Thursday, July 20, 2017

Em Defesa da Burka



Na esteira dos acontecimentos geopolíticos pós-11 de Setembro, tanto os círculos intelectuais dominantes, bem como a esmagadora maioria da população ocidental, consideram que o atual grande vetor de confrontação mundial é representado pelo binómio mundo ocidentalizado/mundo islâmico.

Fala-se cada vez com maior intensidade da ameaça que o Islão representa para os valores ocidentais, originando esta tanto dos sectores radicais da “ideologia islâmica”, bem como dos representantes moderados da mesma, que toleram no seu seio o crescimento do ódio ao Ocidente e que, no fundo, por ações e omissões, pactuam com o mesmo objetivo: a destruição do Ocidente.

Segundo a opinião mais ou menos generalizada, o famoso ataque de Bin Laden às Torres Gémeas e ao Pentágono foi o primeiro salvo numa luta civilizacional que perdurará até à vitória decisiva do Bem contra o Mal: aquele representado pelos valores democráticos e humanistas, este representado pelas forças retrógradas que usam uma interpretação fanática do Islão para manterem subjugadas grandes partes da população mundial.

Mesmo não havendo consenso sobre os meios táticos a empregar nesta luta (confrontação militar, democratização do Islão, assimilação populacional, fomentação de divisões internas no seio inimigo, bombardeamentos nucleares, pacifismo, controles migratórios, etc.), todo o atual espectro político no Oeste - de liberais, a socialistas, sociais-democratas, anárquicos, monárquicos, feministas, conservadores religiosos, comunistas, libertários, ou elementos da direita radical moderna – junta-se em uníssono na asserção que o mundo islâmico representa um retrocesso em relação ao ideário moderno (seja este o atual ou o idealizado).

Neste contexto, uma das questões que amiúde vem a debate é o da permissão do uso da burka ou do chamado véu islâmico (hijab) em espaços públicos na Europa. Não sem gozo constato que na oposição mais vociférica ao uso daqueles trajes unem-se, aos expectáveis elementos laicos mais ou menos radicais - feministas, comunistas, libertários, liberais económicos, etc. - a chamada “direita dos valores”: na Europa, incluímos nesta designação todos os conservadores sociais/religiosos, bem como partidos de tendências autoritárias e monarquistas; nos EUA, os chamados “value voters” e os mais recentes movimentos “Tea Party” e “Alt-Right”, representam um bloco paralelo.

Uma palavra aqui para o “apoio” que alguns sectores da esquerda e, incluso, grupos feministas, fazem do uso da burka ou do véu islâmico – tal acontece apenas por razões táticas de combate à sociedade ocidental atual, que, na sua ótica, não é radical o suficiente e que ainda é dominada por estruturas de poder social e económico que continuam a oprimir, entre outros, a mulher, as raças não brancas e as classes desfavorecidas. O uso da burka é, então, um instrumento da mulher islâmica oprimida pelo Ocidente - na maior parte dos casos, ela é “de côr” e provém de estratos sociais mais desfavorecidos - de usar a sua feminidade e liberdade de escolha de traje e assim atacar as estruturas de poder brancas e patriarcais. Basta contrastar a tolerância que esta esquerda (normalmente caviar) mostra para com a mulher islâmica tradicional, com o desdém e ódio que nutre por uma freira católica, para perceber as suas verdadeiras motivações.

A busca desapaixonada do corrente uso da burka não pode ser dissociada do papel que o vestuário, em geral, ocupava nas sociedades antigas tradicionais, algumas que ainda hoje perduram, se bem que num modo cada vez menos puro.

Se no Ocidente de hoje, o vestuário representa a visão utilitária que o moderno tem da vida, uma expressão da sua pretensa individualidade e liberdade, quando não um instrumento para o progresso destes valores (basta atentar no efeito libertador/desagregador que o bikini ou a mini-saia tiveram na sociedade do séc. XX), no mundo tradicional, no qual incluímos a civilização islâmica ou, por exemplo, a Europa da Idade Média, a roupa e o modo de vestir, tanto nos espaços públicos e privados, é o reflexo da mundividência sobrenatural dessa sociedade, que não é ordenada com base na mera agregação de vontades individuais, mas com base em valores absolutos de caráter espiritual/religioso, que permeiam a sociedade do cimo até à sua base.

Não cabendo aqui dissecar estes valores absolutos ou explicar em detalhe como estas sociedades não foram formadas por uma vontade meramente humana, é importante reter que toda a legislação, estratificação e costumes destas viam no absoluto a sua origem e tinham como função servi-lo, pelo que não subsistiam por si mesmas. O esquecimento ou violação daqueles preceitos acarretaria consequências gravíssimas que afetariam não só a própria ordenação social como também – e mais importante –a tensão espiritual da mesma, pela infiltração de forças de espírito subversivo.

Ao vestuário - modo como os cidadãos se apresentam para com os outros membros da sociedade no exercício das suas funções públicas e privadas - assistia uma importância enorme, que completamente escapa ao cidadão moderno. Por exemplo, a um membro da classe mercantil caberia um tipo de vestimenta que um artífice manual não teria; ou a um lavrador nunca lhe passaria pela cabeça vestir-se como um nobre e vice-versa, mesmo que tivesse meios para tal.

Ainda de maior importância era a acentuação da diferenciação de indumentárias entre membros dos 2 sexos, já que a atribuição do género sexual não era um acaso (ou uma mera construção social, como alguma intelectualidade esquerdista em voga hoje afirma), mas sim algo divino que caberia acentuar para manter a tensão espiritual acima referida e cumprir a respetiva função individual na Terra.


Referindo-nos em particular à indumentária feminina, cabe mencionar que, especialmente com o advento das religiões abraâmicas - surgidas já em plena etapa da história humana em que o Conhecimento Primordial se tinha evaporada na mente dos homens (a chamada Idade de Ferro), uma ainda maior atenção foi dada, entre outros aspetos sociais, à limitação da feminilidade afrodisíaca no seio dessas sociedades. O homem, considerado então como caído e irremediavelmente perdido, já não possuía em si a força espiritual para combater as chamadas forças diabólicas que controlavam a Terra, pelo que se lhe impuseram os mais duros controlos externos – diríamos mesmo desesperados – para manter no seio da humanidade a tensão espiritual que permitisse ainda um contacto, por muito ténue que fosse, com o sagrado.

Essa acentuação dos controlos sociais passaram por uma ainda maior atenção dada à cobertura do corpo da mulher, tanto em espaços públicos, como privados, onde, para além dos órgãos sexuais, se prestou atenção a elementos do corpo feminino considerados mais afrodisíacos, como os cabelos, pescoço, ombros ou pés, que teriam de estar cobertos ou fora de vista por parte de membros do sexo masculino não autorizados (à feminilidade afrodisíaca e sensualista cabia também uma função reconhecida e estruturada, sobre a qual não nos debruçaremos aqui a fundo).

Se o homem moderno já não consegue conceber tais membros como sexuais - exceto por via do que hoje se chamam fetiches e taras, que, tendo uma natureza desviante, não são fruto do acaso - tal é essencialmente um sintoma da sua atual grosseria e dessensibilização para o verdadeiro sensualismo feminino, cujos antigos compreendiam de forma muito mais aguda e perspicaz (basta para tal comparar a sabedoria contida em tratados sexuais do mundo antigo, como o Kama Sutra ou rituais de copulação no mundo islâmico, com o mecanicismo sexual moderno).

A não exposição da carne e respetiva cobertura de órgãos femininos acima referidos, assim como a exaltação da discrição e sobriedade, o não porte de enfeites e acessórios, ou o uso de roupas sem cores, era considerado fundamental para a não acentuação das características sensuais da mulher, principalmente na praça pública, cujo efeitos “diabólicos” eram justificados por razões da teologia coeva, mas principalmente pela perceção dos respetivos efeitos espirituais no mundo terreno, conhecimento esse que tinha origens muito anteriores e que sempre presidiram, em menor ou maior grau, à configuração das sociedades tradicionais de todo o mundo, da América do Norte ao Japão, e cujos vestígios ainda perduram.

Em Portugal, como é sabido, especialmente em zonas rurais, são frequentes os casos de mulheres que cobrem o corpo e a cabeça de negro na via pública, desde o momento da viuvez até à morte, ou de senhoras que cobrem a cabelo com um véu aquando da ida à missa. A estes exemplos, poderíamos adicionar centenas de outros usos que, em maior ou menor grau e por todo o mundo, se mantém e demonstram a universalidade de uma mesma conceção do papel da mulher na sociedade.

O exemplo mais flagrante nos dias que correm e o que mais choca o ocidental, exatamente pelo fosso que mostra entre as conceções modernistas e tradicionais, é o do uso do véu islâmico e da burka nas grandes cidades europeias. Os recentes movimentos migratórios de massa vincaram estas diferenças e não é de estranhar que só no Ocidente, onde os ventos modernistas mais se expandiram, tal uso é questionado e censurado.

Como o moderno não tem a mínima ideia das bases da verdadeira Tradição, da qual o mundo islâmico ainda mantém vestígios, a imposição do modo de vestir – que também existe para o homem islâmico – é só entendido em termos de dominação económica ou de ‘construções’ socias de poder, próprias de sociedades não “evoluídas”. Como a visão utilitária do homem moderno só admite uma limitação de comportamentos por via legal ou democrática, este não concebe que existam grupos humanos que rejam o seu comportamento individual e coletivo por princípios não individualísticos e sagrados. Mesmo que tais comportamentos estejam legislados em documentos antiquíssimos, ele é rápido a desprezá-los como anacrónicos ou meras invenções humanas.

O que mais espanta nesta questão é o facto de, na presença de um comportamento social, derivado de princípios religiosos e tradicionais de base imemorial, este ser violentamente atacado pelos chamados conservadores ocidentais; especialmente quando são estes os primeiros a denunciar os comportamentos amorais dos seus concidadãos e a quebra de valores não individualísticos que afetam as antigas instituições societárias.

É fácil de notar a razão: os chamados conservadores, no fundo, não estão menos infetados pelo vírus progressista que os seus “opositores” de esquerda, dos quais copiam os mesmos tiques e muito raramente divergem em questões verdadeiramente fraturantes ou civilizacionais.

Se se queixam, com razão, de vivermos numa sociedade de matriz essencialmente feminina, onde a virilidade e a verdadeira masculinidade não têm meios de expressão e escape, tal muito se deve ao não freio do sensualismo feminino, em casa, no trabalho e, principalmente, no espaço público.

A população masculina, sem referências e instrumentos de o contrariar ou de saber como utilizá-lo com vista a realizações superiores, vê-se instrumentalizado pelo mesmo. Tanto o crescimento do homossexualismo e da feminização do homem, como a busca desenfreada de sexo com base num cortejo da mulher em que o homem se remete essencialmente a artifícios sensualistas e não viris, são sintomas da causa acima descrita (poderíamos descrever outros fenómenos que são sintomas da mesma dominação feminina, como a atual publicidade com base sexual, pornografia, etc., mas tal mereceria um texto à parte).

Criticar a burka e o véu islâmico, e neste aspeto qualquer vestimenta tradicional, é um ataque aos valores da verdadeira feminidade e de tudo que neste momento o mundo ocidental perdeu.

Mais, sendo este um dos mais poderosos símbolos tradicionais ainda visíveis no mundo moderno, entre todos os símbolos modernistas que poluem a nossas sociedades, pode ter uma função de reavivar uma consciencialização do cidadão comum, que pressente o abismo que se avizinha. A burka, e com ela tudo o que esta representa em termos da função e hierarquização dos sexos, da importância dos valores não materiais e o que comporta conduzir uma vida com verdadeiro significado, pode reavivar o anseio pelo sagrado que todo o homem, mesmo inconscientemente, busca.


Se a Europa quer voltar aos valores viris e a uma base tradicional, verdadeiramente Ocidental, terá que retirar lições do que ainda se pode salvar das sociedades mais orientais, donde se inclui necessariamente o mundo islâmico, por muito que doa aos chamadas conservadores, que, parece, foram levados pela propaganda subversiva a também entender que o Ocidente está em guerra com o mundo islâmico. Não, agora e sempre o modernismo está em guerra com o tradicionalismo - se o verdadeiro Ocidente quer renascer, parece óbvio que lado escolher!

Tuesday, July 11, 2017

A Ditadura do Trabalho:

Recentemente, por razões pessoais, tenho gozado de um período de pausa com termo indefinido nas minhas tarefas profissionais.

Apesar de esta paragem ser voluntária, contra a expectativa inicial de iniciar um período de maior contemplação e de distância do remoinho diário da rotina profissional sobre o qual a minha vida se centrava, tenho-me visto amiúde assaltado por estados de ansiedade e de depressão quanto ao meu futuro, modo de sustentação financeiro e preocupações relacionadas com a perceção deste estado junto de família, amigos e antigos colegas profissionais.

A observação destes estados emocionais e a troca de impressões com outras pessoas relativa à minha situação atual, promoveu reflexões mais profundas sobre a natureza do trabalho vigente no chamado Mundo Ocidental.


 Sendo este um tema vastíssimo, limitar-me-ei em baixo em condensar algumas observações, sem quaisquer pretensões“ científicas” ou académicas:

1.    O Trabalho como sentido de vida:
Os Antigos consideravam o trabalho, no pior dos casos, indigno e vulgar, algo a ser arcado pelas classes mais baixas, algo que denigre o Homem; no melhor dos casos, um fardo inevitável que terá de ser suportado mas minimizado o mais possível, fruto da queda do Paraíso original e parte da eterna condenação a que o Homem está sujeito. Em ambos os casos, o trabalho é visto como algo acessório, cujo exercício de modo algum pode preencher o ser humano de forma completa, sendo visto como empecilho às realizações que o Homem verdadeiramente livre estaria destinado nesta etapa terrestre.


Com o advento da modernidade, esta visão é totalmente rechaçada e o oposto é visto como dogma nas sociedades encubados no ideário da Revolução Francesa: o trabalho é visto, no mínimo, como um direito e dever cívico de todos (capitalismo, social-democracia); em versões musculadas do ideal democrático com tendências messiânicas, como um dever cuja falha implicaria traição ao respetivo ideário e acarretaria as mais nefastas consequências (consulte-se as leis laborais da URSS ou de qualquer regime de tendências comunistas do séc. XX).

Se a frase “o trabalho liberta” está ligada ao regime nazi, bem poderia ser confundido pelo slogan de qualquer outro sistema político moderno, incluído, claro está, o atual sistema democrático, tanto nas suas vertentes liberal e socializante, cujos tentáculos se apropriam a passos cada vez mais acelarados da totalidade da raça humana.

Liberto o Homem dos chamados dogmas religiosos, modos de organização e outros costumes de antanho, vistos como atávicos (que, na verdade, já eram então cada vez menos compreendidos e credores de defesa convicta), a sociedade organizou-se desde então tendencialmente com fins puramente utilitários e pragmáticos, estando agora apetrechada para fornecer ao maior número de homens possível o novo paraíso neste pedaço de terra do sistema solar.



Infelizmente, se no regime moderno os direitos de alguns se democratizaram de forma massiva (acesso ao voto, propriedade, liberdade, etc.), o mesmo se passou com os deveres para com a sociedade. Destes, haverá algum que se possa ter universalizado tanto como o trabalho?
Não é de admirar que numa sociedade totalmente democratizada e cujos valores da maioria são os que predominam, o dever que é mais comum - tanto no sentido quantitativo como qualitativo - é aquele próprio do que definia a classe escrava – o Trabalho. Não olharão os Antigos de cima para o mundo atual com ironia e gozo ao ver as consequências das boas intenções humanas?
E não se pense que ao mencionar-se trabalho me refiro apenas ao labor manual: o trabalho aqui engloba todas as atividades manuais e mentais que têm a matéria física e psíquica como objeto, englobando tanto o administrador público que regista um ato governativo, o empresário que discute preços e fecha negócios, o químico que analisa e regista os dados observados num laboratório privado, o soldado que termina a sua comissão numa missão de paz no Médio Oriente, ao professor universitário que disserta a sua tese relativa à dinâmica dos buracos negros no sistema solar, atá ao político que realiza um comício público em vésperas de eleição.
Se há algo que é transversal à modernidade é a captação progressiva de toda a atividade humana pelo trabalho (cada vez mais assalariado), havendo menos e menos redutos de ação humana verdadeiramente independentemente, onde o Homem exerce a sua ação de forma soberana e independente, constituindo um centro em si mesmo.
Se na Antiguidade tal era o apanágio da função Real e subsidiariamente das classes guerreiras e religiosas, hoje é fácil notar o quão invertida a equação se encontra ao constatarmos que o próprio representante máximo de uma qualquer república ocidentalizada é um assalariado do próprio Estado (o mesmo razoamento se aplicará às monarquias fantoche europeias).


Se na antiguidade havia centros de independência e sociedades humanas e familiares constituídas por homens verdadeiramente livres dentro de uma organização política, há de se notar que, nos dias que correm, o que dantes era uma elite se converteu hoje numa exceção, ou, melhor ainda, um resquício do passado cujo progresso histórico de libertação do homem se encarregará de retificar, segundo nos asseguram as mentes mais progressistas.

Hoje, a realidade é infelizmente outra. Um ser humano que recebe um salário ou cuja condição depende da produção material, nunca foi nem nunca será verdadeiramente livre, se tivermos em conta uma definição de homem cujas possibilidades não se esgotam na produção de matéria ou num mero centro de consumo.


Notámos tal em todos os estratos profissionais e socioeconómicos, inclusive nos grandes chefes de empresas, alguns com fortunas bilionárias, como são por exemplo os grandes diretivos e titãs de Wall Street – acontece que a única verdadeira diferença que têm para com o canalizador da mesma empresa é somente a quantidade e o modo de pagamento do salário, já que aqueles reportam também aos donos da empresa, mais concretamente, diretamente a um conselho de administração.





Pensar-se-ia que uma exceção se poderia fazer quanto aos donos dos meios de produção e do capital. É de notar que estes, mesmo quando não tenham iniciado as suas carreiras como simples assalariados, partilham do mesmo “ethos” do trabalhador comum. O seu papel de empresários (negociantes) é levado a cabo à exaustão e preenche a vida destes homens muito mais que a vida do cidadão médio no papel de trabalhador assalariado, tanto na intensidade da função, como no número de horas dedicados à mesma.

Não é de estranhar que estes homens, hipnotizados pelo lucro, devotem, com raras exceções, a maioria do seu tempo e energia a aumentar as suas fortunas e stocks, sem qualquer intenção de gastar o mesmo numa vida de retiro e despreocupações. Pelo que muitas vezes, a perda da sua riqueza ou parte dela é seguida de tentativas furiosas de recuperá-la e superar os patamares anteriores, uma atitude não sem semelhanças ao jogador compulsivo que arrisca as últimas fichas numa derradeira aposta de casino.

As razões deste acumular desmedido de riqueza que nunca se conseguirá gastar ou da natureza compulsiva de fazer o “último grande negócio” nunca são verdadeiramente explicadas por estes, já que dar uma razão de fundo implicaria expor o carácter patológico destas atividades, reveladores, na verdade, de um espírito limitado por compulsões sub-racionais.


Por certo estes homens estão infinitamente mais próximos em termos de mentalidade e atitude do varredor de lixo que mal garante sustento para si e para os seus ou de um mendigo de rua, que da atividade contemplativa do eremita Tibetano que habita sem sustento uma gruta de montanha ou do samurai japonês que rege a sua via por um estrito código de ética e honra.



Interessante notar que na sua autobiografia, o atual presidente americano se gabava de dormir apenas 5 horas diárias e que fazer negócios preenchia até à sua eleição o restante das demais horas diárias e que, inclusive, nunca tirava férias ou tinha tempo para ver a mulher e filhos. Admitia ainda que todas as suas relações sociais ou de amizade eram motivadas por presentes ou futuras oportunidades de negócio.

Que este homem seja a quinta-essência do tão propagado “sonho americano”, é tudo menos motivo de admiração. Haverá assim tanta diferença entre a atitude ética de um Donald J. Trump com a do antigo trabalhador modelo na URSS que devotava todas as suas atividades fabris e familiares à causa comunista?

As mesmas considerações podem, grosso modo, ser estendidas a todas as camadas sociais modernas.

Relativamente ao atual cidadão médio, o seu trabalho, para além da componente patológica, representa acima de tudo um meio para atingir um nível de sustento que lhe garanta, pelo menos, a manutenção do agregado familiar (cada vez mais reduzido) no corrente estrato socioeconómico.


Com a crescente falta de referências culturais próprias da comunidade, aliada à concomitante erosão de certos constrangimentos religiosos que timidamente ainda se vão mantendo, este ser quase puramente económico só tem como referentes de comparação a situação económica da sua família de origem com o mundo que o rodeia (seja na sua comunidade mais alargada, seja cada vez mais com os estilos de vida divulgados pelos mass media digitais que consome). 


Como o material é tanto ponto de partida, veículo e destino deste homem cada vez mais desenraizado, a sua escolha de trabalho vai depender menos da sua vocação do que da função que melhor granjeie as suas ambições socioeconómicas (mais sobre as vocações abaixo).

O caminho mais seguro será o de assegurar o mais bem pago trabalho assalariado disponível, cuja componente de estabilidade irá também ter preponderância já que neste ser predomina a submissividade e a superficialidade que caracteriza o “homus urbanus”, que ambiciona acima de tudo poder frequentar os locais da moda, vestir para impressionar e decorar a casa com as últimas tecnologias. Para tal, o que representa o sacrifício da quase totalidade dos seus dias úteis de vida num trabalho em que passa a maior parte do tempo em frente ao ecrã a digitar dados no teclado, a estar presente em reuniões em que finge estar interessado e a mostrar serviço ao seu chefe direto, que discretamente despreza mas cuja boa relação é chave para garantir a próxima promoção?


Nada! Este trabalho é fundamental não só para sustento seu e da sua família, como, ainda mais importante, para a projeção do seu estatuto social junto da mesma, do círculo de amigos e daqueles grupos a que ambiciona pertencer. É o trabalho que lhe permite manter as aparências para adquirir o último modelo do carro da moda, o mais moderno sistema de tecnologia móvel que pode passear na rua, como lhe vai permitir atingir o estilo de vida que lhe foi impingido durante os consumos incessantes de publicidade de que é vítima nos anúncios ou séries de tv.



Ao contrário do grande empresário, o estilo de vida dele está intimamente ligado ao número de horas que passa no escritório que comparte com centenas de outros “colaboradores”, com quem mantém conversas de ocasião sobre o tempo e o último jogo de futebol.

Ele sabe que o seu estilo de vida está dependente da sua situação laboral mas, infelizmente, esta depende não só da sua produtividade individual, como da da empresa, da conjetura da indústria em que está inserido e também da economia em geral, sem esquecer dos humores e caprichos do seu superior hierárquico.


Ele acorda todos os dias para ir trabalhar com a noção que irá mais uma vez passar uma jornada a repetir atos de forma mecânica, num trabalho massificado em que a sua influência em termos concretos é muito limitada, vendo-se como uma peça no mecanismo que não controla. Quaisquer semelhanças entre ele e um operário fabril numa linha de montagem fordista serão pura coincidência! Obviamente não veste fato-macaco pois a farda nos dias de hoje consiste no fato e gravata…

2.       O Trabalho como fim da Educação:
Desde o berço, atravessando todo o ensino até à entrada no mundo profissional, a atividade profissional, é apresentada às futuras gerações adultas como o grande desiderato de vida, ao qual todas as outras atividades paralelas ou extracurriculares se devem subordinar.

Um emprego seguro e com grau de sucesso medido proporcionalmente à crescente contrapartida financeira é o pano de fundo que rege a educação de todas as crianças no mundo ocidental e ao qual são devotadas a maior parte das energias das classes educadoras.

A este altar são imoladas todas as energias dos jovens alunos que vêm nesta meta a chave para uma vida de sucesso, no torno da qual irão encontrar parceiro para a vida, constituir família e atingir os respetivos desejos (melhor dito – necessidades) materiais.


Os jovens que, por via de instintos menos adestrados, se mostram menos propensos a encaixar neste molde, são vistos com preocupação por pais e educadores, que irão tomar medidas preventivas e repressivas para corrigir os comportamentos delinquentes: desde chamar a atenção para a “preguiça” daqueles, até envolver a classe médica na diagnosticação do problema, o que envolve cada vez mais a prescrição ao menor de medicação conducente a aumentar os níveis de atenção e robotização do pequeno, tanto na sala de aula como nos períodos de convivência com colegas e família. 



Os sintomas do efeito totalitário que o trabalho exerce na vida escolar são vistos de forma cada vez mais aguda na competição selvagem que já existe nos estados escolares universitários e pré-universitários (últimas fases de seriação dos lugares de entrada mais apetecíveis do mundo de trabalho), e que já avançam rampantes adentro do ensino básico e primário, onde a menor variação da nota final - único critério, abstrato e quantitativo, admitido pela sociedade de massas para selecionar as vocações estudantis – pode decidir a entrada ou não no curso almejado e assim o futuro profissional do jovem aplicante. Será por acaso que o Japão - um dos países ocidentalizados e com um dos sistemas de educação mais exigentes, onde o culto do trabalho é fortíssimo - lidera as taxas de suicídio infantil e juvenil?


É reveladora a descoberta que a totalitarização do culto do trabalho no mundo profissional e escolar é acompanhada pelo proporcional decréscimo da verdadeira cultura vocacional, na qual a escolha e atribuição de determinada carreira a um jovem dependeriam de outros fatores que não só uma nota académica universalizada a toda a comunidade estudantil, mas outras considerações qualitativas, hoje tomadas cada vez mais como inadmissíveis e arcaicas, sejam estas, por exemplo, indicações de orientadores, tendências interiores do jovem, passado familiar, testes de aptidão não académicos, etc.).


A nova mundivisão é facilmente confirmada pela constatação que a esmagadora maioria dos jovens com melhores notas de acesso ao mercado universitário escolhem desproporcionadamente os cursos que lhe permitirão aceder às indústrias profissionais que, em cada País, oferecem o melhor rácio compensação financeira/segurança no acesso ao trabalho (exemplos: em Portugal, a maioria esmagadora de alunos com média escolar mais elevada escolhe o curso universitário de medicina, cujas vagas de emprego artificialmente baixas e ligadas a hospitais públicos, garantem salários exorbitantemente elevados para a realidade do País, aliado à segurança provida pelo carácter público da profissão; nos EUA, os melhores alunos escolhem universidades de negócios, que lhes darão vantagem em aceder aos melhores empregos em Wall Street ou Silicon Valley), demonstrando claramente que razões puramente utilitárias e financeiras permeiam as escolhas vocacionais. Já que se tem de trabalhar para o resto da vida, porque não fazê-lo ao melhor preço?


As consequências do pensamento acima descrito são contribuidoras para uma classe trabalhadora que se encontra presentemente totalmente desmoralizada e só raramente se sente preenchida pela sua atividade diária, que vê nela não mais que um modo de ganhar sustento (não é de estranhar todos os artifícios que os empregadores modernos têm de encontrar para manter os níveis de produtividade, sinal de que reconhecem que as motivações dos seus subordinados são totalmente temporárias e superficiais, as quais não correspondem de modo algum ao seu estado interior). 


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