Sunday, January 21, 2018

Guénon e o Fim dos Tempos: Da Anti-Tradição à Contra-Tradição



Damos aqui início à tradução de uma série de reflexões de René Guénon sobre o Fim dos Tempos, intitulada ‘Guénon e o Fim dos Tempos’.

Deixaremos ao leitor primeiramente alguns capítulos de uma das obras maiores do Mestre intitulada ‘O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos’. Reservamo-nos, se assim entendermos necessário, acrescentar capítulos de outros livros ou outros artigos do mesmo autor que se coadunem com o assunto em causa.

Para já, deixamos a tradução do antepenúltimo capítulo do Reino da Quantidade, ‘Da Anti-Tradição à Contra-Tradição’.

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O capítulo prévio tratou de assuntos que são, como tudo o que essencialmente pertence ao mundo moderno, radicalmente anti-tradicionais; mas num sentido eles vão ainda mais longe do que a ‘anti-tradição’, entendida como sendo pura negação e nada mais, pois levam ao estabelecimento de algo que pode mais apropriadamente ser designado por ‘contra-iniciação’. A distinção entre as duas é similar àquela antes feita entre desvio e subversão, e corresponde às mesmas duas fases da ação anti-tradicional tomada como um todo. A ‘anti-tradição’ encontrou a sua mais completa expressão no tipo de materialismo que podia ser chamado de ‘integral’, como o que prevalecia no final do século passado; quanto à ‘contra-iniciação’, apenas podemos ver dela os seus sinais preliminares, na forma de todas as coisas que ambicionam tornar-se, de algum modo, contrafações da própria ideia tradicional. E é conveniente apontar de uma vez que, como a tendência para a ‘solidificação’, expressando-se como ‘anti-tradição’, não consegui atingir o seu limite extremo – já que tal limite se encontraria fora e para além de toda a existência possível – pode ser expectável que a mesma se aplica à tendência de dissolução, que se expressa por sua vez na ‘contra-iniciação’. As próprias condições da manifestação, desde que o ciclo não esteja completado por inteiro, exigem obviamente que isto aconteça; e no que respeita ao próprio final do ciclo, pressupõe a ‘retificação’ por onde as tendências ‘maléficas’ se ‘transmutam’ para produzir um resultado ‘benéfico’, como já acima foi explicado. Além do mais, todas as profecias (aqui a palavra é obviamente usada no seu sentido legítimo) indicam que o aparente triunfo da ‘contra-tradição’ seja um triunfo temporário, e que no próprio momento em que parece mais completo será destruído pela ação de influências espirituais que intervirão neste ponto para preparar a ‘retificação’ final.1 Nada menos que uma intervenção direta deste tipo chegaria para trazer a um fim, no tempo escolhido, a mais formidável e a mais verdadeiramente ‘satânica’ de todas as possibilidades incluídas na manifestação cíclica; mas tal é suficiente por via de antecipação, e agora é necessário continuar com um exame mais cuidado da real natureza da ‘contra-tradição’.

Para tal propósito, o papel a ser cumprido pela ‘contra-iniciação’ deve de novo ser referido: após ter trabalhado sempre nas sombras para inspirar e comandar invisivelmente todos os movimentos modernos, no final irá forjar a sua ‘exteriorização’, se tal é a palavra correta, algo que será como se fosse a contraparte de uma verdadeira tradição, pelo menos tão completamente e exatamente como tal seja possível dentro das limitações necessariamente inerentes em todas as possíveis contrafações como tal. Como a iniciação é, como explicado, a coisa que efetivamente representa o espírito de uma tradição, assim irá a ‘contra-iniciação’ desempenhar um papel comparável com respeito à ‘contra-tradição’; mas seria obviamente muito errado e impróprio falar do espírito no segundo caso, já que se ocupa daquilo do que o espírito se encontra mais completamente ausente, aquilo que até seria o seu oposto se o espírito não se encontrasse essencialmente para lá de toda a oposição; de qualquer modo a oposição é inegavelmente ambicionada, e é acompanhada por imitação no modo da sombra invertida previamente referia em mais de uma ocasião. É por tal razão que a ‘contra-tradição’, não importa quão longe leve a imitação, nunca poderá suceder a ser algo mais do que uma paródia, mas será a mais extrema e a mais gigantesca das paródias, e temos até agora visto, apesar de toda a falsificação do mundo moderno, algumas ‘tentativas’ muito parciais e algumas muito pálidas ‘prefigurações’ da mesma; algo muito mais formidável está em preparação para um futuro considerado por alguns como estando próximo, sendo a crescente rapidez da sucessão de eventos de hoje uma indicação da sua proximidade. Desnecessário será dizer que nenhuma tentativa será aqui encetada para apontar datas mais ou menos precisas, à semelhança dos seguidores das autointituladas ‘profecias’; e se mesmo tal fosse possível fazer através de um conhecimento da exata duração dos períodos cíclicos (a principal dificuldade em tais casos cai sempre no correto estabelecimento do ponto de partida a tomar como base do cálculo), seria no entanto apropriado manter a reserva mais restrita sobre os resultados, e tal por razões exatamente contrárias àquelas que influenciam os propagadores conscientes e inconscientes de profecias desnaturadas, isto é dizer, em ordem para não correr o risco de contribuir para um maior crescimento da ansiedade e da desordem hoje reinantes no nosso mundo.

De qualquer modo, o que torna possível que as coisas tenham chegado a tal ponto é que a ‘contra-iniciação’ (e isto é algo que tem de ser dito) não pode ser considerada como uma invenção puramente humana, de tal modo que não seria de qualquer modo distinguível pela sua natureza da ‘pseudo-iniciação’ básica; de facto é muito mais que isso, e, em ordem para que tal realmente seja, deve em algum sentido proceder, no que respeita à sua verdadeira origem, da única fonte à qual toda a iniciação se encontra ligada, a mesma fonte da qual, falando mais geralmente, procede tudo no nosso mundo que manifesta um elemento ‘não-humano’; mas a ‘contra-iniciação’ procede daquela fonte por uma degeneração levada ao seu limite extremo, e esse limite é representado pela ‘inversão’ que constitui o ‘satanismo’ propriamente dito. Uma degeneração deste tipo é obviamente muito mais profunda do que a de uma tradição meramente desviada em certo grau, ou mesmo truncada e deixada apenas com a sua parte menos elevada; algo mais se encontra envolvido até que em casos de tradições mortas tão completamente abandonadas pelo espírito que a própria ‘contra-iniciação’ pode fazer uso dos seus ‘resíduos’ para os seus propósitos egoístas, como antes explicado. Isto leva logicamente ao pensamento de que esta degeneração extrema tem origem num passado muitíssimo distante; e, obscura seja a questão das suas origens, existe alguma plausibilidade na ideia de que pode estar ligada à perversão de uma das antigas civilizações pertencentes a um dos continentes que desapareceram nos cataclismos ocorridos no curso do atual Manvantara.2 De qualquer modo é desnecessário afirmar que mal o espírito desapareceu não mais é possível falar de iniciação; os representantes da ‘contra-iniciação’ estão na verdade tão completamente ignorantes como as normais pessoas profanas, e mais irremediavelmente ignorantes do essencial, noutras palavras, de toda a verdade de uma ordem espiritual e metafísica, pois esta verdade tornou-se para eles completamente estranha, até nos seus princípios mais elementares, desde que para eles o ‘céu se fechou’.3 Já que nem pode guiar seres em direção a estados ‘supra-humanos’ como o pode a iniciação, nem confinar-se exclusivamente ao domínio humano, a ‘contra-iniciação’ leva-os inevitavelmente em direção ao ‘infra-humano’, e o poder para o fazer é precisamente o único poder efetivo que lhe resta; é muito fácil ver que isto é algo de muito diferente da comédia da ‘pseudo-iniciação’. No esoterismo islâmico é dito que quem se apresentar em determinado ‘portão’, sem o ter atingido de modo normal e legítimo, vê-o fechar-se na sua cara e é obrigado a voltar, mas não como uma mera pessoa profana, pois tal nunca pode ele voltar a ser, mas como um sãher (um feiticeiro ou um mágico trabalhando no domínio das possibilidades subtis de uma ordem inferior).4 Seria impossível colocar a posição mais claramente; é uma questão da via ‘infernal’ tentar opor a via ‘celestial’, e na realidade atingir as aparências externas de oposição, apesar de tais aparências apenas poderem ser ilusórias; e, como foi anteriormente apontado quando se falou da falsa espiritualidade na qual alguns seres, que estão comprometidos numa espécie de ‘realização invertida’, se perderem, esta via só pode terminar por fim na total ‘desintegração’ do ser consciente e na sua dissolução final.5

Naturalmente, em ordem para que a imitação por reflexão invertida possa ser tão completa quanto possível, centros são plausíveis de serem estabelecidos aos quais as organizações pertencentes à ‘contra-iniciação’ estarão ligadas. Estes centros, claro está, serão puramente ‘psíquicos’, como as influências que eles usam e transmitem, e de modo algum espirituais, como os centros de iniciação e os da verdadeira tradição, mas serão capazes, pelas razões dadas, de assumirem até um ponto as características exteriores de centros espirituais, produzindo então a característica ilusão de ‘espiritualidade invertida’. Mas não será causa para surpresa se estes mesmos centros, e não meramente algumas das organizações que a eles estão mais ou menos diretamente subordinadas, se encontrem envolvidos em lutas uns com os outros, pois o domínio no qual estão colocados é o domínio mais próximo da dissolução ‘caótica’, e portanto a todas as oposições são dadas rédea livre nele, e não são harmonizadas e reconciliadas pela ação direta de um princípio superior, que necessariamente falta em tal caso. O resultado amiúde é uma impressão de confusão e de incoerência em tudo ligado com as manifestações destes centros e das suas ramificações, e tal impressão não é certamente ilusória; é até uma ‘marca’ característica de tais coisas; eles apenas podem concordar como que negativamente, na luta comum contra os verdadeiros centros espirituais, desde que os últimos estejam situados num nível no qual tal luta possa ter lugar, isto é desde que estes estejam interessados num domínio que não se estenda para lá dos limites do nosso estado individual.6 É aqui que o que propriamente pode ser chamado como a ‘estupidez do diabo’ se torna aparente: os representantes da ‘contra-iniciação’ que atuam deste modo são iludidos a pensar que eles estão a opor o próprio espírito, apesar de nada se lhe poder opor na realidade; mas ao mesmo tempo, apesar deles próprios e desconhecido para eles mesmos, eles lhe estarem na verdade subordinados e nunca poderem deixar de o estar, pois tudo o que existe está submetido, ainda que inconsciente e involuntariamente, à Vontade divina, da qual nada pode escapar. Então eles estão na verdade a ser usados, apesar de contra a sua vontade, e apesar de eles poderem manter uma crença contrária, para a realização do ‘plano divino no domínio humano’;7 como todos os outros seres eles tomam a parte desse plano que melhor corresponde à sua natureza, mas em vez de estarem efetivamente conscientes desse papel, como o estão os verdadeiros iniciados, eles apenas se encontram conscientes do seu aspeto negativo e invertido. Portanto eles próprios são joguetes, e de uma maneira tal é muito pior para eles do que é a mera ignorância do profano, já que, em vez de se manterem como estavam no mesmo ponto, tem o efeito de os levar para ainda mais longe do centro principal, até finalmente caírem nas ‘trevas extremas’. Mas se o assunto é observado, não em relação a estes seres, mas em relação ao mundo como um todo, tem de ser admitido que eles são necessários no lugar que ocupam como elementos desse todo, como todos os outros seres, e como instrumentos ‘providenciais’ (para usar linguagem teológica) na passagem do mundo através do seu ciclo de manifestação, pois todas as desordens parciais, mesmo quando elas parecem ser num certo sentido a desordem suprema, devem, no entanto, de algum modo necessariamente contribuir para a ordem total.

Estas poucas considerações devem tornar mais fácil entender o porquê da constituição da ‘contra-iniciação’ ser possível, mas também porque é que ela nunca pode ser de outro modo que não seja eminentemente instável e quase efémero, mas isto não prevenir ela ser em si mesma, como foi anteriormente dito, a mais formidável de todas as possibilidades. Será também percebido que este é o objetivo a que a ‘contra-iniciação’ realmente aponta e sempre apontou através de todo o curso da sua atividade, e que e ‘anti-tradição’ meramente negativa apenas representa uma preparação necessária. Agora só falta investigar mais detalhadamente o que pode ser previsto, com a ajuda de várias indicações concordantes, das modalidades nas quais a ‘contra-tradição’ é expetável ser realizada no futuro.


1  A esta verdade está relacionada a fórmula ‘quando tudo parecer perdido, então é quando tudo será salvo’, repetida num certo modo mecânico por um considerável número de ‘videntes’, cada um dos quais é claro aplicou-o a algo que ele pode entender, normalmente a eventos de menor importância comparativa, até a alguns bastante secundários e meramente ‘locais’, por virtude da tendência ‘minimizante’ já mencionada em conexão com as histórias do ‘Grande Monarca’, levando a vê-lo como nada mais que o futuro rei de França; é desnecessário dizer que as verdadeiras profecias preocupam-se com assuntos de dimensões bem diferentes.

2  O sexto capítulo do Génesis talvez possa fornecer, de um modo simbólico, algumas indicações relativas à origem distante da ‘contra-iniciação’.

3  O simbolismo da ‘queda dos anjos’ pode ser aplicado analogicamente ao assunto em questão, que corresponde exatamente à ordem humana; e tal é a razão da palavra ‘satânico’ ser usada no mais preciso sentido nesta conexão.

4  O último grau da hierarquia ‘contra-iniciática’ é ocupado pelo que são chamados de ‘santos de Satã’ (awliyii' al-shaytiin) que são num sentido o inverso dos verdadeiros santos (awliya' al-Ra~man), assim manifestando a mais completa expressão possível de ‘espiritualidade invertida’ (cf. The Symbolism of the Cross).

5  Uma finalidade tão conclusiva representa apenas um caso excecional, que é o de awliya' al-slzaytan; o destino daqueles que foram menos longe nessa mesma direção é apenas o de serem abandonados na estrada que leva a nenhures, à qual eles podem ser confinados para a indefinidade de um ‘àeon’ ou ciclo.

6  Do ponto de vista iniciático este domínio é o do que é conhecido como os ‘mistérios menores’; por outro lado, tudo ligado aos ‘mistérios maiores’ é essencialmente de uma ordem ‘supra-humana’, e está portanto fora do âmbito de qualquer oposição desse tipo, já que pertence ao domínio que pela sua própria natureza se encontra absolutamente fechado e inacessível à ‘contra-iniciação’ e aos seus representantes de todos os níveis.

AI-Tadab r al-ilahiyyah fi'l-mamlakat al-insaniyyah, títudo do tratado de Mubyi' d-Din ibn al-'Arabi.

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