Thursday, November 30, 2017

O Espírito Burguês



O vazio não existe. Desde o início da existência da humanidade, o homem acreditou que a sua estadia terrena era ditada por correntes e influências espirituais que penetravam a sua vida individual e coletiva, o seu modus vivendi, seja este físico, psíquico ou divino. Mesmo o homem moderno, pese o seu intenso ‘realismo’ e de desdenhar o homem tradicional que acreditava no sobrenatural, crê e vive sob a influência de mitos e correntes psíquicas que ultrapassam a sua existência individual e definem os seus pensamentos e atitudes. E não falamos aqui somente dos nossos contemporâneos que se afirmam religiosos, pois basta fazer referência aos dogmas profanos atuais como o cientismo ou o progressismo, por ora reinantes, para perceber que – consciente ou inconscientemente – as ideias chaves de uma época não são aleatórias e obedecem a uma corrente psíquica que impregna a mentalidade dos coevos. Tomando o exemplo do mito evolucionista hoje tão predominante, um pouco de reflexão sob o seu modo de implementação na menta coletiva permite concluir que tal paradigma de entendimento não foi implementado por via da reflexão racional efetuada por mentes humanas individuais, ainda mais sabendo-se que tal conceção foi sempre estranha à grande maioria da humanidade terrestre até há poucos séculos atrás, incluindo às próprias elites governativas e educacionais anteriores.

Portanto, concebemos a história humana como que saturada por diversas correntes supra-humanas que a cada momento da existência permeiam as mentes dos seres que habitam a Terra. E se de facto uma corrente tiver uma maior preponderância num dado momento ou latitude, tal não significa que outras de sentidos opostos - ou inclusive com o mesmo sentido mas de direção mais extremada – não existam, tão só que apenas subsistem em estados mais latentes. Para exercerem efeito sobre a humanidade, não dependem somente delas mesmas, mas da aptidão – melhor diríamos, da disposição – dos seres humanos para as receberem e as potenciarem. E se concordamos que a maioria – a esmagadora maioria – da humanidade é agente passivo da história, existe necessariamente elites de homens, que, por ações e omissões, funcionam como conduto entre as forças sobre-humanas que lhes são afins e a Terra, veiculando aquelas e influenciando, assim, indiretamente, as atitudes mentais da época. E se uma corrente de pensamento efetua maior influência numa dada época do que noutra, tal se deve tanto a uma diminuição das conexões estabelecidas pelos representantes terrestres da que era anteriormente a predominante, como a uma correspondente intensificação da ativação de correntes de orientação distinta por parte de seres que as desejam atiçar para assim influenciarem conjuntos de populações mais ou menos alargados que se encontram sob a sua ‘alçada’.

Não querendo soar demasiado ‘esotérico’ nem assustar os nossos leitores ‘pragmáticos’, apenas gostaríamos de realçar na nossa introdução ao tema deste ensaio que, de facto, a todas as etapas da humanidade correspondem ideias-chave que determinam os respetivos comportamentos, como se cada época fosse dominada por um - à falta de melhor termo – espírito preponderante.

Se existe um espírito que domina a época atual, tal é o espírito burguês. Avisamos que tal nome não é de modo algum perfeito e contém falhas, e inclusive poderíamos adotar outras designações, inclusivamente com conotações religiosas, mas parece-nos que a designação escolhida encaixa na perfeição ao período histórico moderno, que vai do séc. XVI até aos nossos dias e que acentua o seu caráter particular numa maior corrente subversiva de duração infinitamente maior – a qual, se adotarmos uma perspetiva religiosa sob o mesmo tema, também se pode denominar por satânica.

O espírito burguês como força predominante no mundo Ocidental surgiu com toda a sua pujança durante o Renascentismo europeu, especialmente nas regiões de Inglaterra e da Europa Central e do Norte, que foram as primeiras que assistiram à ascensão do chamado Terceiro Estado às rédeas do poder político e cultural, formalizada politicamente pela Revolução Francesa de 1789.

Esta classe de seres, que até então viam a sua influência na sociedade limitada pelas antigas classes dominantes, deixou a partir desse momento de encontrar freio na sua usurpação dos aparelhos culturais, sociais, políticos, económicos, administrativos e religiosos. A tal usurpação muito contribuiu o surgimento da heresia do Luteranismo, que assentou de feição nestas mentes individualistas e economicistas que sentiam-se destinadas para comandar comunidades de homens onde a finança, o comércio e o mercantilismo já eram os valores supremos. Com o triunfo de Lutero e o reconhecimento do novo evangelho pelos poderes de então, as antigas instituições nobiliárquicas e clericais perderam a sua autoridade e o caráter individualista da sociedade acentuou-se, passando-se a enfatizar a busca terrena da felicidade individual, que na ótica burguesa correspondia fundamentalmente ao ato produtivo e mercantil com o intuito da criação de lucro e da acumulação de riqueza.

Procuremos então analisar a mentalidade da nossa época, encapsulada pelas características do seu arquétipo - o burguês.

O burguês tem como principal função da sua estadia terrestre, como é sabido, enriquecer, o mais que pode e consegue. Para ele, a consecução da riqueza terrena é fundamental como objetivo de vida e a ele vai devotar a maioria das suas forças e energias. O dinheiro, consequência visível e a medida deste sucesso, é o barómetro que lhe permite distinguir-se dos restantes seres humanos, e portanto procura-o tanto pelo reconhecimento do seu esforço e habilidade, como para usá-lo de novo como instrumento de multiplicação do mesmo, seja em investimento em capitais produtivos, seja para influenciar decisões favoráveis nesse desiderato. Considerações de inspiração divina e religiosa são extremamente raras nesta classe de seres, e se as há, coadunam-se e subordinam-se sempre ao exercício do seu mister comercial ou mercantil – que é a sua imagem de marca adquirida por via hereditária ou por uma ambição pessoal acentuada. Todas as suas relações sociais e modos de comportamento são guiados com este fim egoísta. Mesmo quando o bem comum é considerado – entendido por ele num sentido puramente materialista – subordina-se na esmagadora maioria dos casos à consecução da sua felicidade terrena.

O burguês não pratica a atividade pela atividade em si, mas sim pelo fim que esta lhe permite alcançar: acumulação de riqueza, que por sua vez granjeará maior acumulação de riqueza. Seja qual for a atividade (comercial, financeira, industrial ou agrícola), o burguês nunca a vê como fim mas sempre como meio. Ao contrário das classes nobres e clericais cujo fim da sua atividade era a atividade em si (guerra, administração, ascetismo, estabelecimento dos ritos, etc.), o burguês, como o escravo, visa o trabalho para obter um benefício material, que no limite se resume à mera sobrevivência terrena. Tudo o que é espiritual, cultural e social, é acessório à sua função essencial.

Esta perspetiva de vida cria uma visão maniqueísta do mundo guiada pelos interesses privados, em que imperam os instintos de sobrevivência e a competição por recursos limitados onde os outros seres que pertencem à sua comunidade são: ou potenciais aliados seus - sejam sócios de negócio, fornecedores ou clientes - ou inimigos - competidores comerciais ou representantes de frentes e de correntes ideológicas que podem criar barreiras á sua atividade mercantil e financeira. Assim, é-lhe imperioso cair nas boas graças de todos e de manter uma rede de contactos a mais alargada possível que lhe permita potenciar ao máximo as oportunidades de negócio e respetiva rede de relações comerciais, assim como aniquilar os competidores atuais e potenciais. O burguês sabe que quantos mais homens conhecer e possa influenciar – sempre por via material, que no fundo é o único móbil que o guia e que projeta em todos os elementos da sua comunidade – aumenta exponencialmente as suas hipóteses de fortuna, pelo que naturalmente devota interesse às atividades coletivas da sociedade que lhe permitam publicitar o seu nome e assim ganhar credo e favores junto de uma rede o mais extensa possível. Assim, o seu ativismo social é quase sempre público, incluindo as suas atividades caritativas, que na verdade, constituem para ele investimentos que lhe trarão benefícios a algum prazo.

Este esforço constante de agradar ao máximo número de pessoas possível, manter uma aparência de caráter e de comportamento necessárias para efetuar negócios e estabelecer relações de interesse, mesmo que tal não corresponda à sua disposição interior, são das características principais do burguês. Ele é um exímio projetador da disposição e da atitude que julga serem as mais adequadas ao ambiente e aos interlocutores do momento, já que de tal depende o seu sucesso comercial. Além disso, ele deve dominar as práticas do chamado marketing e da autopromoção, enaltecendo a todo o momento a superior qualidade dos seus produtos e serviços, comparando-as favoravelmente às dos seus competidores, que subtilmente menospreza. Neste contexto, mais que a verdade e a etiqueta, ele tem de se preocupar em criar na mente dos seus interlocutores o cenário que mais lhe é favorável, por meio de artifícios variados, que no limite não correspondem de todo à realidade. Manter as aparências é mister. Quando na presença de um potencial cliente, ele tem de apreender a disposição e os gostos do mesmo, assim como a respetiva estação social e económica, de forma a adaptar a sua postura e atitude, para poder cair nas suas boas graças com o intuito de aumentar as probabilidades de efetuar a venda. A busca incessante do lucro que consome a maior parte da sua vida mental, aliada ao medo da concorrência e da erosão da sua fortuna - que teme acima de tudo o mais - causam nele uma profunda inquietação e irrequietismo, pelo que é normal vê-lo num constante afã com as suas atividades comerciais, sempre projetando futuros cenários de expansão comercial e de poupança, que para sempre consomem a sua vida, mesmo quando já é abastado.

O burguês é na essência um cosmopolita, no sentido moderno do termo, já que a busca da sua felicidade individual e material é potenciada pela constante expansão do seu círculo social, seja de que estrato, condição e latitude este consista. Se pertence formalmente a uma nação ou a uma instituição coletiva regional, a sua ambição, refletida na expansão da sua atividade, obriga ao estabelecimento de contactos e relações permanentes com interlocutores e mercados estrangeiros, pelo que a sua lealdade às instituições de origem é sempre de ordem secundária àquela atividade da qual depende o seu modo de vida.

Mais do que conhecimentos teóricos, religiosos e filosóficos, ele preocupa-se sobretudo com conhecimentos técnicos da respetiva atividade a que se encontra associado ou que possam facilitar o estabelecimento de negócios, como línguas estrangeiras, contabilidade, finanças, gestão, ou a criação de códigos e linguagens comerciais que reduzam ao máximo as barreiras mercantis. E do mesmo modo que pratica a sua atividade, ele apreende este conhecimento com o desiderato principal de assim obter mais vantagens materiais. A sua necessidade de conhecimento, limita-se quase sempre ao que de mais prosaico existe, resumindo-se na maior parte dos casos à coleção das notícias e factos que lhe permitam conceber uma ideia ou uma previsão de como navegar as águas turvas em que se movimenta na sua atividade comercial. Mesmo nas suas demandas mais intelectuais, raramente busca o conhecimento pelo conhecimento, pois quase sempre se dedica a algo que o possa beneficiar materialmente ou que lhe permita impressionar o seu círculo de relações. Mais que ser, o parecer continua a imperar.

O espírito burguês é essencialmente democrático, por várias ordens de razões. Primeiro, o burguês liberto detém um caráter subversivo, já que nutre dentro de si, originalmente ou por herança familiar, ressentimentos para com as classes que anteriormente se encontravam mais elevadas na hierarquia social – realeza, nobreza ou clérigo. Ele, quando não integrado em estruturas hierárquicas fortes e vivificadas, desconfia daquelas e vê como injusta a sua antiga ou ainda presente condição de subordinação – do seu posto, só observa a plebe do alto – e desdenha as tradições daquelas, que concebe somente como formalismos vazios pois, no fundo, sente-se inferiorizado pela mais elevada dignidade de porte que pressupõe uma superioridade que não é somente material, no fundo a única que o burguês e a plebe conhecem. O burguês, em todos os lugares em que se libertou dos grilhões da Tradição, aboliu as classes sociais superiores ou tentou usar a sua fortuna e influência para se lhes juntar, sinal já do ocaso eminente daquelas. Por outro lado, o burguês, vendo em todos os seres potenciais clientes ou parceiros de negócio, apreende a sociedade como um conjunto de seres qualitativamente iguais, mesmo que apenas formalmente. Qualquer distinção hierárquica ou imposição à liberdade individual é vista com desconfiança já que afetará a sua capacidade de expansão comercial e margens de lucro. Por outro lado, sendo a sua vida estabelecida à volta de contratos de compra e venda e de relações que se baseiam não na palavra dada ou na honra, mas na vontade escrita e legalmente ou judicialmente demandável - pois de tal depende a sua subsistência num mundo mercantilizado – tende naturalmente a expandir esta mundividência a toda a vida social e política. Partindo da sua vivência interior e dos hábitos que adota nos seus relacionamentos, concebe que todos os seres humanos são passíveis de faltar à palavra dada, pelo que cabe contratualizar o máximo de relações possíveis, maximizando assim a possibilidade do cumprimento das mesmas. Porém, o idealismo político da mente burguesa, que no fundo tem sempre um substrato utilitário, esbarra em todas as ocasiões em que as circunstâncias políticas ou económicas do momento ameaçam perturbar o seu modo de sustento. Em tais casos, quando se depara com uma oportunidade de negócio que só pode ser obtida por via política ou administrativa, ele não tem pejo em usar de táticas ilegais ou contrárias à ideologia coletiva que professa, já que, no final de contas, a sua ambição de sucesso comercial e social sobrepõe- se às convicções políticas e espirituais a que adere num dado momento, das quais se desenvencilha assim que tal se lhe depara como mais conveniente.

A visão contratualista e legalista do mundo e da vida vai efetivamente criar sistemas ideológicos que, por um lado, veem o bem privado como algo fundamental a proteger, que deve ser preservado a todo o custo da cobiça de terceiros, e que, por outro, minimizam a influência de órgãos superiores nas vontades individuais e comerciais. Este contratualismo estende-se obviamente ao seio das suas empresas e ofícios, onde, na pele de administrador de homens - vistos como meros recursos produtivos destituídos de verdadeira personalidade – uniformiza o mais possível as relações entre os trabalhadores e o detentor do capital, descurando sempre que pode as distinções qualitativas entre os homens, para focar unicamente as quantitativas (sejam físicas ou mentais) que contribuam para o maior sucesso da empresa, com a correspondente diferenciação na componente salarial de cada indivíduo, que adquire correlação com a componente produtiva. E se a exploração do fator humano na empresa mercantil é apresentado pelo burguês como sinal da sua fundamental bondade e dedicação à causa pública, justificando assim a busca crescente de mais e mais lucro, ele é o primeiro a implementar métodos de produção cada vez mais desumanos e duros, a deslocalizar empregos ou a automatizar por via mecânica e tecnológica a produção desde, quando tal lhe é mais benéfico.

Por outro lado, o burguês é essencialmente um produto do seu tempo, em todas as áreas, assumindo sempre publicamente as posições e as atitudes dominantes da comunidade. Ele vai sempre projetar-se para os outros como um esteio dos ‘melhores’ valores e conceções do momento, obrigação que estende aos elementos do seu círculo familiar mais próximo, cuja atividade e reputação podem igualmente afetar as suas atividades mercantis. E será sempre ele, seja em capacidade oficial ou como cidadão privado, a promover publicamente a moralidade reinante, os costumes sociais considerados de bom-tom ou os valores assumidos pela maioria dos concidadãos. Nunca o burguês toma publicamente posições radicais ou consideradas extremistas, já que tal afetará o seu negócio, que depende sempre de cair nas boas graças do maior número possível de potenciais clientes. No entanto, como no caso dos ideais políticas que perora publicamente, as suas práticas comerciais são suscetíveis de não se coadunarem com a moralidade que faz questão de pregar. E se a sua ambição o ‘obriga’ amiúde a práticas comerciais desleais e desonestas, não raras vezes embarca em atividades comerciais imorais e perniciosas para a sociedade que contrariam a propagada moralidade, mas que rapidamente racionaliza como criadoras de riqueza e de emprego para o coletivo.


Pensamos que o acima indicado, não sendo exaustivo, deixará ao leitor uma ideia mais bem-definida do arquétipo psíquico burguês que representa o espírito da nossa época. Não lhe será difícil transpor este espírito para o nosso tempo e observar este espírito a guiar as nossas empresas, escolas, igrejas, ministérios, partidos, ideologias, atitudes e comportamentos. Tal mereceria um outro ensaio, como também mereceria uma análise separada a crescente influência de um outro espírito, de tendência ainda mais inferior, que já corrói os alicerces do mundo burguês e que o irá destronar a médio prazo. Contamos debruçarmo-nos sobre ambos num futuro que esperamos breve.

Monday, November 27, 2017

Sobre o Desenvolvimento Tecnológico




Depois de algumas discussões e reflexões tidas nos últimos tempos, tomo a liberdade de deixar algumas considerações acerca do desenvolvimento tecnológico, e mais importante, as suas causas e consequências no mundo Ocidental.

Parece-me que estas reflexões poderão ser de uso para aqueles que pressentem o erro em que opera o mundo moderno e que só poderá levar senão à catástrofe - já pressentida em todos os domínios da vida pública e privada – e que no fundo desejam a restauração da verdadeira Ordem e Tradição.

É comum a todos os nossos contemporâneos considerarem o progresso tecnológico como um processo inelutável, consequência da descoberta pelos nossos antepassados recentes de novos meios de transformação e de produção de matéria, de invenções científicas e de novas teorias e ciências que, aplicadas a também novos meios de gestão industrial, possibilitaram, entre outros, avanços materiais notáveis, especialmente desde o século XIX, que mudaram de forma radical a vida humana, o modo de viver coletivo, o trabalho e o respetivo conforto material.

E se não deixa de haver críticas acerbas a tal processo, tais vêm mais de uma perspetiva integradora, que vê este processo como algo essencialmente benéfico ou inevitável e que representa o que de melhor existe da mente ativista e empreendedora da civilização europeia, prova cabal da nossa superioridade e inteligência em relação a outros povos ditos primitivos, cujo modo de vida não pode senão ser considerado como retrógrado e, no fundo, digno da nossa pena e compaixão.

Aqui não podemos de deixar de notar o tique progressista e marxista em ação, que considera a história em termos de um genérico progresso constante, não apenas das condições materiais da existência, mas, no fundo, de uma liberalização e emancipação progressiva do indivíduo que, por uma crescente tomada de consciência de formas mais elevadas de conhecimento da sua condição e de entendimento do seu meio ambiente, não pode senão melhorar crescentemente a sua vida interior e exterior com vias a atingir, quiçá, a perfeição nesta etapa terrestre, num futuro mais ou menos distante.

E engane-se quem pensar que tal mentalidade é perfilhada apenas pelos ditos progressistas de vertente socialista ou comunista; esta atitude está incorporada de forma mais ou menos consciente por todo o homem atual, incluindo o autoproclamado conservador que, mesmo exaltando as virtudes antigas, não deixa de se maravilhar com os grandes avanços da ciência e da técnica modernas, motivo de orgulho e marca de distinção para com as sociedades antigas e também com as coevas que ainda não tiveram o ‘privilégio’ de participar em tais empresas. Numa sociedade como a atual, profana e materializada, que critério mais importante haverá para diferenciação entre organizações humanas que não os índices produtivos, as taxas de crescimento, níveis de industrialização, capacidade técnica, índices de literacia e outros quejandos?

Com isto, não queremos significar de modo algum que não existem ainda considerações morais e religiosas, apenas que estas assumem um caráter subsidiário às acima referidas, que são vistas, pelo menos ainda em alguns casos, como de igual importância.

Estas preocupações com o bem-estar material e com o avanço tecnológico não surgiram do nada. Basta um olhar rápido para a história da humanidade para facilmente observar que descobertas científicas e materiais foram uma constante e que todas as sociedades as incorporaram de algum modo na respetiva existência. O que é novo é o facto de tal esforço, que dantes era visto como algo secundário, ser agora considerado a força motriz da existência humana, ao qual são devotadas todas as capacidades intelectuais e técnicas do mundo moderno! Mais, não é com certeza um acaso que tal desenvolvimento e obsessão pela tecnologia tenham surgido na Europa na mesma altura em que, por diversos processos, a razão passou a ser considerada como o único instrumento capaz de alcançar verdadeiro conhecimento.

Destes processos, destacamos aqui o Iluminismo e o Luteranismo. O primeiro, tomando o homem como centro do Universo e medida de todas as coisas, considerou-o o único ser capaz e responsável pela sua liberdade e independência, vistas estas em termos puramente materiais. O último, transpôs ainda antes a mesma atitude – então latente - para a doutrina religiosa, que passou a ser vista como uma experiência somente de caráter individual e subjetivo, com as matérias metafísicas dessacralizadas a um mero ato de fé racional, independentes da conduta terrena.

Neste caldo mental, o homem europeu profanou a sua existência de modo cada vez mais progressivo, e se ainda manteve formas exteriores de observância de ritos e uma fé difusa no sobrenatural e na redenção, estas tinham pouca influência na nova mentalidade, que, liberta dos antigos estritos grilhões espirituais, era agora ocupada pela especulação filosófica e científica desregrada e pela busca de satisfação material, únicos desideratos possíveis em tal ambiente.

A partir daí, de forma crescente, a vida humana enredou-se cada vez mais na exploração da terra, na produção de riqueza, na transformação de materiais e na busca constante de novos modos de torna-los cada vez mais eficientes e intensivos. Daí, a comercialização da vida, a procura de fortuna e o surgimento de centros industriais e urbanos, em detrimento de um estilo de via centrado em povoações autossustentadas, foi um passo, que por sua vez deram lugar aos mais recentes monumentos fantasmagóricos de aço e betão que constituem as metrópoles modernas e os mastodônticos centros industriais e tecnológicos, tributos prestados à nova era de eficiência e de opulência material.

Parece então óbvio que o que se apelida de progresso tecnológico moderno não passa da desenfreada busca de conforto e riqueza pelo homem moderno europeu, mentalmente liberto de toda a força ordenadora antigamente dada pela religião e pelas castas aristocráticas, que sempre ocuparam lugares cimeiros na estrutura hierárquica de todas as sociedades tradicionais antigas. Tal ‘progresso’ só se torna inevitável quando essas forças superiores e moldadoras da classe mercantil e da mentalidade burguesa perdem força e deixam estas entregues aos seus próprios meios, sem freio vindo de cima. Nessa altura, os horizontes do homem reduzem-se à visão material da vida e o que se apoda de progresso tecnológico torna-se ‘inevitável’, pois já nada refreia o irrequietismo e a ambição das castas inferiores agora libertas.

É para nós límpido que o que é novo não são as descobertas científicas ou tecnológicas, que como já afirmamos sempre existiram, mas sim o facto de que, ao contrário de antigamente, estas já não serem vistas como meros processos técnicos e secundários, que se encontram subordinados aos valores que sempre guiaram as grandes civilizações de todo o Mundo – os espirituais – mas a razão mesma da existência humana!

Não deixa portanto de ser interessante observar autoproclamados conservadores europeus desprezarem outras organizações humanas – algumas milénios mais antigas que a dita civilização Cristã – por estas não terem sido obreiras ou cúmplices destas ‘descobertas’ e destes ‘avanços’. No fundo, escapa a essas pessoas que tais organizações espirituais, onde incluímos a verdadeira civilização Europeia antiga, nunca terem considerado aquelas como dignas de importância maior. O valor e distinção destas comunidades não derivam destas ciências e técnicas mecanicistas, mas de valores de verdadeira Civilização, podendo portanto viver muito bem sem elas.

Mais, estas sociedades sempre tiveram consciência, como a têm hoje ainda alguns europeus, que muitos destes avanços e descobertas tecnológicas, na maior parte dos casos, constituem uma prisão potencial para o homem, que enredado nelas se torna seu escravo, criando necessidades falsas e supérfluas, que consomem toda a sua vida. Basta um olhar de relance pela vida ocidental de hoje para perceber como o homem moderno devota a sua vida ou a trabalhar ou na busca frenética de conforto e satisfação, hipnotizado que está com a matéria, já não sabendo há muito tempo que a verdadeira liberdade só poderá ser encontrada pelo homem que guia a sua vida terrena nos valores da verdadeira espiritualidade.

Julgar o valor civilizacional de comunidades humanas com base em conceitos profanos e subversivos – como o são o progressismo, o darwinismo, o cientismo, o racionalismo, a técnica ou evolucionismo – é no fundo jogar o jogo do inimigo, e esquecer o que verdadeiramente tornou o Ocidente notório e digno se ser restaurado.

Saturday, November 18, 2017

O Significado das Cruzadas




Para finalizar esta série de artigos sobre a missão espiritual do guerreiro, traduzimos o artigo 'O Significado das Cruzadas', de Julius Evola.

Aos leitores interessados em aprofundar a visão de Evola sobre o assunto, recomendamos a leitura da colectânea de artigos reunida pela Editora Arktos, intitulada 'Metafísica da Guerra', bem como a obra-prima de Evola, 'Revolta Contra o Mundo Moderno', especialmente a primeira parte do mesmo.


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Reiniciemos a nossa análise das tradições relativas ao heroísmo nas quais a guerra é considerada como um caminho de realização espiritual no sentido estrito do termo, e portanto adquire uma justificação e propósito transcendentes. Já discutimos as conceções do antigo mundo romano a este respeito. Depois descrevemos as tradições nórdicas em relação ao caráter imortalizante da verdadeira morte heroica no campo de batalha. Era necessário examinar estas tradições antes de considerar o mundo medieval, já que, como é geralmente reconhecido, a Idade Média, como uma cultura, surgiu da síntese de três elementos: primeiro, o Romano; segundo, o Nórdico; e terceiro, o Cristão.

Portanto, estamos agora em posição de examinar a ideia da ‘sacralidade da Guerra’ como a Idade Média Ocidental a conheceu e cultivou. Como é evidente, aqui referimo-nos às Cruzadas entendidas no seu sentido mais profundo, não no sentido reclamado pelos materialistas históricos, de acordo com os quais elas são meros efeitos de determinismo económicos e étnicos, nem no sentido reclamado por mentes ‘desenvolvidas’, de acordo com as quais estas são meros fenómenos de superstição e exaltação religiosa – nem, finalmente, consideramo-las inclusive como um simples fenómeno Cristão. A respeito a este último ponto é necessário não perder de vista a correta relação entre os meios e fins. É frequentemente dito que, nas Cruzadas, a fé Cristã fez uso do espírito heroico da cavalaria Ocidental. No entanto, o oposto é verdade: isto é dizer, a fé Cristã, e os imperativos relativos e contingentes da luta religiosa contra o ´infiel´ e a ‘libertação’ do ‘Templo’ e da ‘Terra Santa’, foram meramente os meios que permitiram ao espírito heroico manifestar-se, afirmar-se, e de realizar uma espécie de ascese, distinta daquela de tipo contemplativo, mas não menos rica nos frutos espirituais. A maior parte dos cavaleiros que forneceram as suas energias e o seu sangue para a ‘guerra santa’ apenas tinham as ideias mais vagas e os conhecimentos teológicos mais rudimentares acerca da doutrina pela qual lutavam.

No entanto, o contexto cultural das Cruzadas continha uma riqueza de elementos capazes de conferir sobre eles um mais elevado significado simbólico espiritual. Mitos transcendentes ressurgiram do subconsciente na alma da cavalaria Ocidental: a conquista da ‘Terra Santa’ localizada ‘além-mar’ estava muito mais associada do que muita gente imaginava com a antiga saga de acordo com a qual ‘no Oriente distante, onde o Sol se levanta, fica a cidade sagrada onde a morte não existe, e os felizes heróis capazes de a alcançar gozarão da serenidade celestial e da vida perpétua’.

Além disso, a luta contra o Islão tinha, pela sua natureza e desde o seu início, o significado de um teste ascético. ‘Esta não era apenas a luta pelos reinos da Terra’, escreveu o famoso historiador das Cruzadas, Kugler, ‘mas uma luta pelo Reino dos Céus: as Cruzadas não foram uma coisa de homens, mas de Deus – portanto, elas não devem ser pensadas do mesmo modo que os outros eventos humanos’.

A guerra sagrada, de acordo com um antigo cronista, devia ser comparada a ‘um banho como aquele no fogo do purgatório, mas antes da morte’. Os que morriam nas Cruzadas eram simbolicamente comparados pelos Papas e padres ao ‘ouro três vezes testado e sete vezes refinado no fogo’, uma provação purificante tão poderosa que abria a via para o Senhor supremo.

‘Nunca esqueçam este oráculo’, escreveu São Bernardo, ‘quer vivamos, ou quer morramos’ pertencemos ao Senhor. É uma glória para vós nunca abandonar a batalha [exceto se] cobertos de louros. Mas é uma glória ainda maior ganhar no campo de batalha uma coroa imortal […] Ó ditosa condição, na qual a morte pode ser aproximada sem medo, esperada com impaciência, e recebida com um coração sereno!’ Era prometido que o Cruzado obteria uma glória absoluta – gloris asolue, na língua provençal – e que ele encontraria ‘descanso no paraíso’ – conquerre lite en paradis – isto é dizer, ele atingiria a supra-vida, o estado de existência sobrenatural, algo para além da representação religiosa. A este respeito, Jerusalém, o objetivo ambicionado da conquista, aparecia num duplo aspeto, como uma cidade terrena e como um símbolo, cidade celestial e inatingível – e a Cruzada ganhava um valor interior independente de todos os significados exteriores, apoios ou motivos aparentes.

Além disso, a maior contribuição em termos humanos foi proporcionada às Cruzadas pelas ordens cavaleirescas como os Templários e os Cavaleiros de São João, que eram constituídas por homens que, como o monge ou o ascético Cristão, tinham aprendido a desprezar a vaidade desta vida; guerreiro cansado do mundo, que tudo tinha visto e de tudo desfrutado, que se refugiavam em tais ordens, fazendo-se então prontos para uma ação absoluta, livre dos interesses da vida comum, temporal, e também da vida política no sentido mais estreito do termo. Urbano VIII dirigia-se à cavalaria como a comunidade supranacional daqueles que estavam ‘prontos a correr para a guerra onde quer que esta desponte, e levar consigo o medo das suas armas em defesa da honra e da justiça’. Eles deveriam responder à chamada para a ‘guerra santa’ tão mais rapidamente, de acordo com um dos escritores do tempo, já que o prémio não seria um feudo terreno, sempre revogável e contingente, mas um ‘feudo celestial’.

Aliás, o curso das Cruzadas, com todas as suas mais extensas implicações para a ideologia geral da altura, guiava a uma purificação e a uma internalização do espírito da empresa. Dada a convicção inicial de que a guerra pela ‘verdadeira fé’ não podia ter que não fosse um resultado vitorioso, os primeiros reveses militares sofridos pelos exércitos Cruzados foram uma fonte de surpresa e de desalento; mas, no fim, elas serviram para trazer à luz o aspeto mais elevado da ‘guerra sagrada’. O infeliz destino da Cruzada foi comparado pelos clérigos de Roma aos infortúnios da virtude, que só são repostos noutra vida. Mas, ao tomar este rumo, eles já se encontravam próximos de reconhecer algo superior tanto à vitória como à derrota e de acordo com a maior importância dada ao aspeto distintivo da ação heroica que é alcançado independentemente de quaisquer frutos visíveis e materiais, quase no sentido de uma oferenda, que traz consigo, do sacrifício viril de todos os elementos humanos, a imortalizante ‘glória absoluta’.

Vê-se que deste modo eles aproximavam-se de um plano que era supra-tradicional, no sentido mais restrito, histórico e religioso da palavra ‘tradição’. A fé religiosa particular, os propósitos imediatos, o espírito antagonista, eram claramente revelados como meios, como inessenciais em si mesmos, como a própria natureza de um combustível que é usado com o único propósito de reavivar e de alimentar uma chama. O que restava no centro, no entanto, era o sagrado valor da guerra. Então tornou-se possível reconhecer que os elementos do momento atribuíam à batalha o mesmo significado tradicional.

Deste modo e apesar de tudo, as Cruzadas permitiram enriquecer a troca comercial entre o Ocidente Gibelino e o Oriente Árabe (ele mesmo centro de mais antigos elementos tradicionais), uma troca cuja significância é muito maior do que a até aqui atribuída pela maior parte dos historiadores. Como os cavaleiros das ordens cruzadas encontraram-se na presença dos cavaleiros das ordens árabes que eram praticamente seus duplos, manifestando correspondências em éticas, costumes, e por vezes também em símbolos, pelo que a ‘guerra santa’ que impeliu as duas civilizações uma contra a outra sob o nome das suas respetivas religiões, levou-os ao mesmo tempo a encontrarem-se, isto é dizer, a compreender que, apesar de terem como ponto de partida duas fés diferentes, eles tinham eventualmente concordado guerrear os idênticos e independentes valores da espiritualidade.

No nosso próximo artigo, vamos estudar o modo pelo qual, das premissas desta fé os antigos Cavaleiros árabes ascenderam ao mesmo ponto supra-tradicional do Cavaleiro Cruzado obtido pelo seu ascetismo heroico.

Por agora, no entanto, gostaríamos de lidar com um ponto diferente. Aqueles que consideram as Cruzadas, com indignação, como entre os mais extravagantes episódios da ‘negra’ Idade Média, não têm sequer a menor suspeita de que o que chamam de ‘fanatismo religioso’ foi o sinal visível da presença e da efetividade de uma sensibilidade e determinação, a ausência da qual é mais característica do verdadeiro barbarismo. De facto, o homem das Cruzadas foi capaz de se elevar, de lutar e morrer por um propósito que, na sua essência, era suprapolítico e supra-humano, e servir numa frente definida não mais pelo que é particularístico, mas antes pelo que é universal. Isto mantém-se um valor, um inamovível ponto de referência.

Naturalmente, isto não deve ser incompreendido para significar que o motivo transcendental possa ser usado como uma desculpa para o guerreiro se tornar indiferente, para se esquecer das obrigações inerentes à sua pertença a uma raça ou a uma pátria. Este não é de todo o nosso ponto, que se preocupa antes com os significados profundamente díspares de acordo com os quais as ações e os sacrifícios podem ser experimentados, apesar do facto que, do ponto de vista externo, eles possam ser absolutamente os mesmos. Existe uma diferença radical entre aquele que se envolve na guerra simplesmente como tal, e aquele que simultaneamente se envolve numa ‘guerra sagrada’ e encontra nela uma experiência mais elevada, ambas desejadas e desejáveis para o espírito.

Devemos acrescentar que, apesar de esta diferença ser primariamente interior, no entanto, porque os poderes de interioridade são permitidos encontrar expressão também na exterioridade, derivam efeitos dela também no plano exterior, especificamente nos seguintes aspetos:

Primeiro que tudo, numa ‘indomabilidade’ do impulso heroico: o que experimenta espiritualmente o heroísmo é permeado por uma tensão metafísica, um ímpeto, cujo objeto é ‘infinito’, e que, portanto, levá-lo-á perpetuamente em frente, para além da capacidade daquele que luta por necessidade, que luta por como um ofício, ou que é empurrado por instintos naturais ou sugestão externa.

Segundo, aquele que luta de acordo com o sentido de uma ‘guerra sagrada’ encontra-se espontaneamente para além de todo o particularismo e subsiste num clima espiritual o qual, a qualquer dado momento, pode muito bem fazer surgir e dar vida a uma unidade de ação supranacional. Isto é precisamente o que ocorreu nas Cruzadas quando príncipes e duques de todos os territórios se juntaram numa empresa heroica e sagrada, independentemente dos seus interesses utilitários e divisões políticas particulares, fazendo surgir pela primeira vez a grande unidade Europeia, fiel à própria civilização e ao princípio próprio do Sacro Império Romano.

Agora, neste respeito também, se formos capazes de deixar de lado o ‘integumento’, se formos capazes de isolar o essencial do contingente, encontraremos um elemento cujo valor precioso não é restrito a qualquer período histórico particular. Para suceder em referir a ação heroica também a um plano ‘ascético’, e em justificar o primeiro de acordo com o último, é aclarar o caminho em direção a uma possível unidade de civilização, de renovar todo o antagonismo condicionado pela matéria, preparar o ambiente para grandes distâncias, e para maiores frentes, e, portanto, para gradualmente adaptar os propósitos externos de ação para o seu novo significado espiritual, quando ela não é mais um território ou as ambições temporais de um território pelo que se luta, mas um princípio superior de civilização, uma prefiguração do que, apesar de ainda metafísico, se move sempre em frente, para além de todo o limite, para além de todo o perigo, para além de toda a destruição.



Thursday, November 16, 2017

A Sacralidade da Guerra




Continuando a série de artigos de Julius Evola, na revista Diorama, sobre o significado sobrenatural da batalha e da via divina do guerreiro, deixamos em baixo a segunda tradução da mesma, intitulada ‘A Sacralidade da Guerra’, onde são exploradas antigas conceções das mesmas, nomeadamente da Antiguidade Clássica, Nórdica e Iraniano-Persa.

Sem demoras, passemos a palavra ao Mestre.


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No nosso artigo prévio vimos que o fenómeno do heroísmo guerreiro tem várias modalidades que podem conter significados fundamentalmente diferentes, como visto do ponto de vista de uma conceção intencionada a estabelecer os valores da verdadeira espiritualidade.

Resumindo o nosso argumento deste ponto de vista, devemos começar por indicar algumas conceções relativas às nossas antigas tradições, as tradições Romanas. Geralmente possui-se apenas a ideia secular dos valores da antiga Roma. De acordo com esta ideia, o romano era meramente um soldado, no sentido mais limitado da palavra, e era por intermédio das suas qualidades guerreiras, junto a uma feliz combinação de circunstâncias, que ele conquistou o mundo. Esta é uma opinião falsa.

Em primeiro lugar, até ao fim do Império, os romanos consideraram um artigo de fé que as forças divinas tanto criaram como protegeram a grandeza de Roma – o Imperium e a Aeternitas. Aqueles que se querem limitar ao ponto de vista ‘positivo’ estão obrigados a substituir esta perceção, profundamente sentida pelos romanos, por um mistério; o mistério, isto é, de que um punhado de homens, sem quaisquer razões fundamentais, sem sequer ideias de uma ‘terra’ ou de ‘pátria’, e sem quaisquer dos mitos ou paixões aos quais os modernos tão voluntariamente deitam mão para justificar a guerra e promover o heroísmo, avançaram continuamente, mais e mais longe, de um país para o próximo, seguindo um estranho e irresistível impulso, baseando tudo numa ‘ascese de poder’. De acordo com o testemunho unânime de todos os autores Clássicos, os primeiros romanos eram altamente religiosos – nostri maiores religiossimi mortalhes, Sallust relembra – e Cícero e Aulo Gélio repetem este ponto de vista – mas esta sua religiosidade não estava confinada a uma esfera abstrata e isolada, mas permeava a sua experiência na sua totalidade, incluindo nela própria o mundo da ação, e portanto também o mundo da experiência guerreira.

Um especial colégio sagrado de Roma, o Fecial, presidia sobre um bem definido sistema de ritos que proporcionavam a contraparte mística a todas as guerras, desde a sua declaração até à sua conclusão. Mais genericamente, é incontrovertido que um dos princípios da arte militar dos romanos requeria deles que não se permitissem entrar em batalha antes de certos sinais místicos terem definido, por assim dizer, o seu ‘momento’. Por causa das distorções mentais e dos preconceitos resultantes da educação moderna, a maior parte das pessoas de hoje estaria naturalmente inclinada para ver nisto uma superestrutura extrínseca, supersticiosa. Os mais benevolentes poderão ver nela um fatalismo excêntrico, mas de facto não é nenhum destes conceções. Como outras disciplinas similares, a essência da arte augural praticada pelo patriciado romano, aproximadamente com as mesmas características facilmente encontráveis no ciclo das grandes civilizações Indo-Europeias, não era a descoberta do ‘fates’, que seria então seguido com passividade supersticiosa: antes, era o conhecimento dos pontos de juntura com influências invisíveis, o uso nas quais as forças dos homens podiam-se desenvolver, multiplicar e serem guiadas para atuarem num plano mais elevado, em adição ao do dia-a-dia, levando então – quando a harmonia era aperfeiçoada – à remoção de todos os obstáculos e de todas as resistências dentro do evento-complexo que era ao mesmo tempo material e espiritual. À luz deste conhecimento, não pode ser duvidado de que os valores romanos, a romana ‘ascese de poder’, possuía necessariamente um aspeto espiritual e sacral, e que eram consideradas não apenas como um meio para a grandiosidade militar e temporal, mas também como um meio de contacto e de ligação com forças sobrenaturais.

Se o fosse apropriado aqui fazer, poderíamos reproduzir vários materiais conformes a esta tese. No entanto, limitar-nos-emos a mencionar que a cerimónia do triunfo em Roma tinha um carácter que era muito mais religioso que militarístico no sentido secular, e que muitos elementos parecem demostrar que os romanos atribuíam a vitória dos seus líderes menos aos seus meros atributos humanos do que a uma força transcendente que se manifestava de modo real e efetivo através deles, do seu heroísmo e por vezes do seu sacrifício (como no rito do devotio, no qual os líderes se sacrificavam). O conquistador, na acima mencionada cerimónia do triunfo, vestia a insígnia do supremo Deus do Capitólio, como se fosse ele próprio uma imagem divina, e ia em procissão para colocar os láureos triunfais sobre as mãos deste Deus, como se o último fosse o verdadeiro conquistador.

Finalmente, uma das origens da apoteose triunfal, isto é, do sentimento que um númen imortal se encontrava escondido no Imperador, era indubitavelmente a experiência do guerreiro: o Imperador era originalmente o líder militar, aclamado no campo de batalha no momento da vitória: neste momento, ele aparecia transfigurado por uma força dos cimos, terrível e maravilhosa, que impunha precisamente a impressão do numen. Esta visão, permita-se-nos acrescentar, não é particular a Roma, mas encontra-se através de toda a antiguidade Mediterrânica Clássica, e não se restringia aos vencedores da guerra, mas por vezes também se aplicava aos vencedores dos Jogos Olímpicos e às sangrentas lutas do circus. Na Hélade o mito dos heróis emergiu com as doutrinas místicas, como o Orfismo, que significativamente unia o caráter do guerreiro vitorioso ao do iniciado, que conquistavam a morte, no mesmo simbolismo.

Estas são indicações precisas de um heroísmo e de um sistema de valores que se desenvolveram por diversas vias espirituais mais ou menos conscientes, caminhos santificados não apenas pela gloriosa conquista material que mediavam, mas também pelo facto de que representavam uma espécie de evocação ritual envolvendo a conquista do intangível.

Vamos considerar algumas das evidências desta tradição, a qual, pela sua própria natureza, é metafísica: elementos como a ‘raça’ não podem portanto possuir mais do que um lugar secundário e contingente. Dizemos isto porque, no nosso próximo artigo, pretendemos lidar com a ‘guerra santa’ praticada pelos guerreiros do ‘Sacro Império Romano-Germânico’. Essa civilização, como é bem sabido, representa um ponto de convergência criativa entre vários componentes: Romano, Cristão e Nórdico.

Já discutimos as características relevantes do primeiro destes componentes (isto é, o Romano). O componente Cristão aparecerá com as características de um heroísmo cavaleiresco, supra-nacional, nas Cruzadas. O componente Nórdico falta ser indicado. Para evitar alarmar os nossos leitores desnecessariamente, afirmamos à partida que o que agora referimos tem, essencialmente, um caráter supra-racial, e não é portanto calculado para encorajar a tomada de posição de quaisquer povos autointitulados de ‘especiais’ contra outros. Para nos limitarmos a uma pista do que aqui queremos excluir, diremos que, surpreendente que possa parecer, no revivalismo nórdico mais ou menos frenético que hoje é celebrado, ad usum delphini, pela Alemanha Nacional Socialista, encontramos maioritariamente uma deformação e uma vulgarização das tradições nórdicas que existiram originariamente e como ainda podiam ser encontradas naqueles príncipes que consideravam ser uma grande honra poderem dizer de si mesmos que eram Romanos, apesar de partilharam a raça teutónica. Em vez, para muitos escritores racialistas de hoje, ‘nórdico’ veio a significar anti-romano e ‘romano’ veio a significar, mais ou menos, ‘judeu’.

Tendo dito isso, pensamos ser apropriado reproduzir esta significativa fórmula de exortação do guerreiro como encontrada na antiga tradição Celta: ‘Luta pela tua terra e aceita a morte se assim for necessário, já que a morte é a vitória e a libertação da alma’.

A expressão mors triumphalis na nossa tradição Clássica corresponde a este conceito. Relativamente à própria tradição Nórdica, é bem conhecido de todos o aspeto que se relaciona com o Valhalla, o lugar da imortalidade celestial, reservada à divina estirpe ‘livre’ e aos heróis caídos no campo de batalha (‘Valhalla’ significa literalmente ‘do palácio dos escolhidos’). O Senhor deste lugar simbólico, Ódin ou Wotan, aparece no Ynglingasaga como o que, pelo seu auto-sacrifício simbólico na ‘Árvore do Mundo’, mostrou aos heróis como chegar à estadia divina, onde eles habitam eternamente num pico luminoso, que se mantém sob a perpétua luz solar, acima de qualquer nuvem. De acordo com esta tradição, nenhum sacrifício ou forma de oração era mais apreciada pelo Deus supremo, e rica em frutos supra-mundanos, que aquela realizada pelo guerreiro que luta e cai no campo de batalha. Mas isto não é tudo. Os espíritos dos heróis caídos juntam as suas forças à falange daqueles que assistem os ‘heróis celestiais’ que combatem no Ragnarökk, isto é dizer, o destino do ‘escurecimento do divino’, que, de acordo com esses ensinamentos, e também de acordo com os Helenos (Hesíodo), tem ameaçado o mundo desde tempos imemoriais.

Veremos este motivo a reaparecer, sob diversas formas, nas lendas medievais que se relacionam com a ‘última batalha’ que o imperador imortal lutará. Aqui, para ilustrar a universalidade destes elementos, apontaremos a similitude entre estas conceções nórdicas (as quais, diga-se de passagem, Wagner tornou irreconhecíveis por meio do seu preguiçoso e bombástico romanticismo teutónico característico) e as antigas conceções iranianas e mais tarde persas. Muitos ficam espantados ao ouvir que as bem conhecidas Valquírias, que escolhem as almas dos guerreiros destinados ao Valhalla, são apenas a personificação transcendental de partes dos próprios guerreiros, partes que encontram o seu equivalente exato nas Fravashi, das quais as tradições iraniano-persas falam – as Fravashi, também representadas como mulheres de luz e virgens retumbantes de batalha, que personificam mais ou menos as forças sobrenaturais pelo meio das quais as naturezas humanas dos guerreiros ‘fieis ao Deus da Luz’ se transfiguram e trazem vitórias terríveis, esmagadoras e sangrentas. A tradição iraniana também inclui a conceção simbólica de uma figura divina – Mitra, descrita como o ‘guerreiro que nunca dorme’ – que, à cabeça dos seus fiéis Fravashi, luta contra os emissários do negro deus até ao retorno do Saoshyant, Senhor de um futuro reino de paz ‘triunfante’.

Estes elementos da antiga tradição Indo-Europeia, na qual são recorrentes os motivos da sacralidade da guerra e do herói que não morre realmente mas que se torna parte de um exército místico numa batalha cósmica, tiveram um efeito percetível em vários elementos do Cristianismo – pelo menos naquele Cristianismo que podia realisticamente adotar a divisa: visa est militia super terram, e reconhecer não apenas a salvação através da humildade, caridade, esperança e o resto, mas também – ao incluir o elemento heroico do nosso caso – de que ‘o Reino do Céu pode ser tomado pela força’. É precisamente esta convergência de motivos que dá nascimento à conceção espiritual da ‘Grande Guerra’ peculiar à idade medieval, que discutiremos no nosso próximo artigo na ‘Diorama’, onde lidaremos mais de perto com o aspeto interior, individual, mas não menos pertinente destes ensinamentos.


Tuesday, November 14, 2017

As Formas do Heroísmo Guerreiro




É com grande prazer que iniciamos hoje a tradução de três artigos de Julius Evola para o português sobre a temática da guerra e da sua significação espiritual.

Esta iniciativa vem na esteira de algumas discussões tidas ultimamente sobre as influências pré-cristãs na Europa Ocidental, em geral, e na Idade Média, em particular. E é de facto inegável que se a Europa pode ser considerada Cristã há mais de 1500 anos - se tomarmos em conta o ano de 323 como o da adoção formal do Cristianismo como religião oficial do Império Romano – é inegável que permaneceram um conjunto de mitos, éticas, instituições, comportamentos, etc. que, fazendo parte fundamental da herança europeia, não são reconduzíveis de modo algum a essa herança confessional.

Uma dessas heranças é sem margem de dúvida a da Cavalaria, que, encontrando o seu apogeu na época das Cruzadas, permeou pelas suas instituições e espírito o ambiente Europeu da Idade Média de forma marcante. Quais as origens antigas desta instituição? Donde podemos ir buscar a génese do espírito guerreiro de que estas Ordens se encontravam imbuídas? Mais importante, em que outras alturas e latitudes se podem encontrar exemplos e formas talvez ainda mais puras deste espírito?

Estas e outras questões sobre este tema, Julius Evola foi dando resposta em diversos artigos ao longo da sua vida, tendo alguns deles sido compilados em 2011 pela editora Arktos, no livro Metaphysics of War. Os três artigos aqui traduzidos do inglês, foram originalmente publicados em 1935 na revista Diorama, e debruçam-se, respetivamente, sobre os tipos de heroísmo guerreiro, o sentido sagrado da guerra para os antigos romanos e o significado espiritual das Cruzadas.

Em baixo deixamos a tradução das ‘Formas de Heroísmo Guerreiro’, onde Evola nos fornece uma descrição das tipologias do heroísmo, recorrendo à sua conceção da involutiva regressão das castas. Aqui, a conceção da guerra, a sua significação íntima e respetivas possibilidades irão acompanhar esse retrocesso quadripartido que, partindo de uma civilização cujo centro é domínio por uma elite espiritual e divina, degenera ultimamente numa civilização em que o elemento preponderante é dominado pelos interesses da casta dos escravos.

Última nota relativa à referência ao Fascismo feita por Evola. Se por esta altura ele ainda tinha esperanças em moldar o regime italiano com vista à restauração de um novo Império Romano, tal em breve deu lugar à desilusão, que, diga-se, não o impediu de se mostrar presente em alturas críticas, nomeadamente durante a República de Saló, mais por dever de lealdade guerreia deste espírito khsatriya do que por questões de afinidade ideológica ou política.
  

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O princípio fundamental subjacente a todas as justificações da guerra, do ponto de vista da personalidade humana, é o ‘heroísmo’. A guerra, é dito, oferece ao homem a oportunidade de acordar o herói que dorme dentro dele. A guerra quebra a rotina da vida confortável; por meio das provações árduas, ela oferece um conhecimento transfigurador da vida, vida de acordo com a morte. O momento em que o indivíduo consegue viver como um herói, mesmo que nos momentos finais da sua vida terrena, pesa infinitamente mais na escala dos valores que uma existência prolongada, usada no monótono consumo das trivialidades citadinas. Duma perspetiva espiritual, estas possibilidades compensam as tendências negativas e destrutivas da guerra, que são tendenciosamente acentuadas pelo materialismo pacifista. A guerra obriga a que o indivíduo se aperceba da relatividade da vida humana e também da lei de ‘mais que a vida’ e portanto a guerra tem sempre um valor anti-materialista, um valor espiritual.

Tais considerações têm mérito indisputável e cortam com as tagarelices do humanitarismo, com o sentimentalismo grisalho, com os protestos dos campeões dos ‘princípios imortais’, e com a ‘Internacional’ dos heróis da caneta. No entanto, deve ser considerado que, em ordem para totalmente definir as condições sob as quais o aspeto espiritual da guerra se torna visível, é necessário examinar o assunto mais profundamente e definir uma espécie de ‘fenomenologia da experiência guerreira’, distinguindo várias formas e ordenando-as hierarquicamente para salientar o aspeto que deve ser considerado a epítome da experiência heroica.

Para chegar a este resultado, torna-se necessário recordar a doutrina com a qual os leitores habituais da ‘Diorama’ já estarão familiares, a qual – tenha-se em mente – não é produto de qualquer construção particularista, pessoal ou filosófica, mas antes uma ideia real, de natureza positiva e objetiva. É a doutrina da hierárquica quadripartição, que interpreta a história mais recente como a de uma queda involuntária de cada um dos quatro degraus hierárquicos para o próximo. Este quadripartição – deve ser recordado – é a que, nas civilizações tradicionais, deu origem a quatro castas distintas: os escravos, a classe-média burguesa, a aristocracia guerreira, e os portadores de uma autoridade pura, espiritual. Aqui, ’casta’ não significa – como a maior parte assume – algo artificial e arbitrário, antes o ‘lugar’ onde indivíduos, partilhando da mesma natureza, o mesmo tipo de interesse e vocação, a mesma qualificação primordial, se juntam. Uma ‘verdade’ específica, uma função específica, define as castas, no seu estado normal, e não vice-versa: esta não é portanto um assunto relativo a privilégios e modos de vida que são monopolizados com base numa constituição social mais ou menos mantida de modo artificial e inatural. O princípio subjacente por detrás de todas as instituições formativas em tais sociedades, pelo menos nas suas formas históricas mais autênticas, é a de que não existe um simples e universal modo de viver a vida individual, mas vários caminhos espirituais distintos, respetivamente apropriados ao guerreiro, à burguesia e ao escravo, e que, quando as funções sociais e repartições             correspondem de facto a esta articulação, existe – de acordo com uma expressão clássica – uma ordem secundum equum et bonum.

A ordem é ‘hierárquica’ no que implica uma dependência natural dos modos inferiores de vida aos modos superiores – e, de acordo com a dependência, cooperação; a tarefa do superior é a de obter expressão e personalidade numa base puramente espiritual. Apenas tais casos, nos quais esta direta e normal relação de subordinação e de cooperação existem, são saudáveis, como é tornado claro pela analogia do organismo humano, que se torna enfermo se, por qualquer hipótese, o elemento físico (escravos) ou o elemento vegetativo da vida (burguesia) ou aquela da vontade animal incontrolada (guerreiros) tomar a primazia e o lugar guia da vida de um homem, e é saudável apenas quando o espírito se constitui no ponto de referência central e último das restantes faculdades, às quais, no entanto, não é negada uma autonomia parcial, com vidas e direitos subordinados próprios dentro da unidade do todo.

Aqui não falamos de uma qualquer antiga hierarquia, mas acerca da ‘verdadeira’ hierarquia, o que significa que o que se situa acima e governa é realmente o que é superior, é necessário referirmo-nos a sistemas de civilizações que, no centro, contém uma elite espiritual, e onde os modos de vida dos escravos, da burguesia e dos guerreiros derivam o seu significado último e suprema justificação pela referência ao princípio que é a herança específica desta elite espiritual, e manifestam este princípio na sua atividade material. No entanto, chega-se a um estado anormal se o centro se move, pelo que o ponto de referência fundamental, em vez de ser o princípio espiritual, é o da casta servil, a burguesia ou os guerreiros. Cada uma destas castas manifesta a sua própria hierarquia e um certo código de cooperação, mas cada uma é mais perversa, mais distorcida, e mais subversiva que a última, até o processo chegar ao seu limite – isto é, um sistema no qual a visão de vida característica dos escravos tudo orienta e se imbui em todos os elementos sobreviventes do conjunto social.

Politicamente, este processo involuntário é bastante visível na história Ocidental, e pode ser rastreado até aos tempos mais recentes. Estados do tipo aristocrático e do tipo sagrado foram sucedidos por Estados monárquico-guerreiros, em larga medida já secularizados, que por sua vez foram substituídos por estados governados por oligarquias capitalistas (casta burguesa ou mercantil) e, finalmente, temos assistido a tendências em direção a estados socialistas, coletivistas e proletários, que culminaram no Bolchevismo russo (a casta dos escravos).

Este processo é igualável às transições de um tipo de civilização para outro, de um significado fundamental de vida para outro. Em cada fase, todo o conceito, todo o princípio, toda a instituição assume uma significação diferente, refletindo a mundivisão da casta predominante.

Isto também se aplica à ‘guerra’, e portanto podemos lançar-nos à tarefa a que originalmente nos comprometemos, de especificar as variedades de significado que a batalha e a morte heroica podem adquirir. A guerra tem uma face diferente, em concordância com a sua colocação sob o signo de uma ou doutra casta. Enquanto no ciclo da primeira casta, a guerra foi justificada por motivos espirituais, e claramente mostrava o seu valor como uma via para a realização espiritual e para a obtenção da imortalidade pelo herói (este sendo o motivo da ‘guerra sagrada’), no ciclo das aristocracias guerreiras eles lutavam pela honra e poder de um príncipe específico, ao qual mostravam uma lealdade que era voluntariamente associada ao prazer da guerra pela guerra. Com a passagem do poder para as mãos da burguesia, houve uma profunda transformação; nesta altura, o conceito de nação materializou-se e democratizou-se e uma conceção antiaristocrática e naturalista de pátria é formada, pelo que o guerreiro é substituído pelo soldado-cidadão que luta simplesmente pela defesa e conquista da terra; as guerras, no entanto, geralmente mantém-se maliciosamente guiadas por motivos supremacistas ou por tendências fundadas dentro da ordem económica e industrial. Finalmente, a última etapa, na qual a liderança para as mãos dos escravos, já foi possível realizar – no Bolchevismo – outro significado de guerra, que encontra expressão nas, características palavras de Lenine: ‘A guerra entre as nações é um jogo infantil, preocupado que está pela sobrevivência da classe média que não nos interessa. A verdadeira guerra, a nossa guerra, é a da revolução mundial com vista à destruição da burguesia e ao triunfo do proletariado’.

Dado tudo isto, é óbvio que o termo ‘herói’ é um denominador comum que embarca tipos e significados muito díspares. A prontidão para morrer, para sacrificar a própria vida, poderá ser o único pré-requisito, do ponto de vista técnico e coletivista, mas também do ponto de vista do que hoje, bastante brutalmente, se tornou referido como ‘carne para canhão’. No entanto, é também óbvio que não é deste ponto de vista que a guerra pode reclamar qualquer valor espiritual verdadeiro em relação ao indivíduo, quando o último não aparece como ‘carne’ mas antes como personalidade – como o é na perspetiva romana. Este último ponto de vista é apenas possível desde que exista uma relação dupla dos meios em relação aos fins – isto é dizer, quando, por um lado, o indivíduo aparece como um meio com respeito a uma guerra e aos seus fins materiais, mas, simultaneamente, quando uma guerra, por sua vez, é um meio para o indivíduo, como uma oportunidade de um caminho para o fim da sua realização espiritual, favorecida pela experiência heroica. Existe então uma síntese, uma energia e, com ela, uma eficiência mais elevada.

Se prolongamos esta cadeia de pensamento, torna-se bastante claro, do que foi dito, que nem todas as guerras contêm as mesmas possibilidades. Isto por via de analogias, as quais não são meras abstrações, mas que atuam positivamente ao longo de vias invisíveis para a maior parte das pessoas, entre o caráter predominante nos vários ciclos de civilização e o elemento que corresponde a este caráter no todo da entidade humana. Se, nas eras dos mercadores e dos escravos, triunfam forças que correspondem às energias que definem a parte pré-pessoal, física, instintiva, ‘telúrica’ e vital-orgânica, então, nas eras dos guerreiros e dos líderes espirituais, forças encontram expressão que correspondem, respetivamente, ao que no homem é caráter e personalidade volitiva, e o que nele é personalidade espiritualizada, personalidade realizada de acordo com o seu destino sobrenatural. Por causa de todos os fatores transcendentes que nelas se levantam, é óbvio que, numa guerra, a maioria não pode coletivamente submeter-se a um despertar, correspondente mais ou menos à influência predominante dentro da ordem das causas que foram as mais decisivas para a eclosão daquela guerra. Individualmente, a experiência heroica leva então a diferentes pontos de chegada: mais precisamente, a três pontos primários.

Estes pontos correspondem, basicamente, aos três tipos possíveis de relação nos quais a casta guerreira e o seu princípio podem encontrar-se com respeito às outras manifestações já consideradas. No estado normal, eles estão subordinados ao princípio espiritual, e então desperta-se um heroísmo que guia à supra-vida, à supra-personalidade. O princípio guerreiro pode, no entanto, construir a sua própria forma, recusando reconhecer qualquer coisa superior a si própria, e então a experiência guerreira toma uma qualidade que é ‘trágica’: insolente, temperamento de aço, mas sem luz. A personalidade mantem-se, e reforça-se, mas, ao mesmo tempo, também o limite constituído pela sua natureza naturalística e simplesmente humana. No entanto, este tipo de ‘herói’ mostra uma certa grandeza, e, naturalmente, para os tipos hierarquicamente inferiores ao guerreiro, i.e., os tipos burguês e escravo, esta guerra e este heroísmo já se tornam em superação, elevação, realização. O terceiro caso envolve um princípio guerreiro degradado, que passou ao serviço dos elementos hierarquicamente inferiores (as castas abaixo de si). Em tais casos, a experiência heroica encontra-se unida, quase fatalmente, a uma evocação, e a uma erupção, de forças instintivas, sub-pessoais, coletivas, irracionais, pelo que ocorre, basicamente, uma lesão e uma regressão da personalidade do indivíduo, que só pode viver a vida de modo passivo, guiado tanto pela necessidade ou pelo poder sugestivo de mitos ou de impulsos impetuosos. Por exemplo, as notórias histórias de Remarque refletem apenas possibilidades deste último tipo; elas recontam as histórias de tipos humanos que, levados para a guerra por falsos idealismos, pelo menos apercebem-se que a realidade é algo de muito diferente – eles não se tornam vulgares, nem desertores, mas tudo que os impele em frente através dos testes mais terríveis são forças elementares, impulsos, instintos e reações, nas quais não resta muito de humano e que não conhecem qualquer momento de luz.

Numa preparação para a guerra que não deve ser apenas material, mas também espiritual, é necessário reconhecer tudo isto com uma visão clara e inabalável em ordem a ser permitido orientar as almas e as energias em direção a uma solução mais elevada, a única que corresponde aos ideias dos quais o Fascismo recolhe a sua inspiração.

O Fascismo aparece-nos como uma revolução construtiva, no que afirma um conceito aristocrático e espiritual de nação, contra ambos o coletivismo socialista e internacionalista, e a noção democrática e demagógica de nação. Em adição, o seu desprezo pelo mito económico e a elevação da nação na prática ao grau de ‘nação guerreira’, marca positivamente o primeiro grau desta reconstrução, que é a de subordinar os valores das antigas castas dos ‘mercadores’ e dos ‘escravos’ aos valores da casta imediatamente mais elevada. O próximo passo será o da espiritualização do próprio princípio guerreiro. O ponto de partida encontrar-se-á então presente para desenvolver uma experiência heroica no sentido mais elevado das três possibilidades acima mencionadas. Para entender como tal possibilidade mais elevada e espiritual, que foi efetivamente experimentada nas maiores civilizações que nos precederam, e que, para falar verdade, é o que nos mostra o seu caráter constante e universal, é mais do que erudição estudiosa. Tal é o que com iremos lidar nos nossos próximos escritos, nos quais nos focaremos essencialmente nas tradições peculiares à Romanidade antiga e Medieval.


Friday, November 10, 2017

Características Judaicas Aplicadas ao Capitalismo



Terminamos aqui a nossa incursão pelo livro de Sombart, 'os Judeus e o Capitalismo Moderno', mais concretamente o capítulo XII do mesmo.

Nesta última secção, Sombart estabelecesse de forma sistematizada o paralelismo entre a mentalidade capitalística e a judaica, concluindo que as condições para o sucesso na primeira encontram-se de sobre-maneira representadas no génio judaico típico.

Mais uma vez, aconselhamos vivamente a leitura do obra completa, que promove uma introdução a todos os títulos brilhante à génese do moderno espírito financeiro no Ocidente e a correspondente influência judaica.

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Agora aparece a questão, como e de que modo as características judaicas permitiram aos judeus tornaram-se financiadores e especuladores, para de facto se envolverem com tanto sucesso em atividades económicas dentro da estrutura do sistema capitalístico como a que tiveram como matemáticos, estatísticos, médicos, jornalistas, atores e advogados? Em que medida este talento para o empreendedorismo capitalista brota dos elementos do caráter judeu?

Falando genericamente, podemos afirmar em relação a isto o que já afirmamos sobre o capitalismo e a religião judaica, de que as ideias fundamentais do capitalismo e aquelas do caráter judeu mostram uma similaridade única. Portanto temos um paralelismo triplo entre o carácter judaico, a religião judaica e o capitalismo. O que já descobrimos ser o todo envolvente traço do povo judeu? Não o era a extrema intelectualidade? E não é a intelectualidade a qualidade que diferencia o sistema capitalista de todos os outros? A habilidade organizativa nasce da intelectualidade, e no sistema capitalista encontramos a separação entre a cabeça e os braços, entre a tarefa de dirigir e aquela de produzir. “Para o melhor trabalho se encontrar totalmente finalizado, são necessárias mil mãos, mente apenas uma.” Isto resume o estado de coisas capitalístico.

A mais pura forma de capitalismo é aquela onde as ideais abstratas se encontram mais claramente expressadas. Que elas são parte e parcela do caráter judaico, já o notámos; não é agora ocasião para aprofundar a relação próxima entre o capitalismo e o judeu. De novo, as qualidades de abstração no capitalismo manifestam-se na substituição de todas as diferenças qualitativas pelas meramente quantitativas (valor de troca). Antes do capitalismo aparecer, a troca era um processo plurilateral, multicor e técnico; agora é apenas um ato especializado – aquele do mercador: antes existiam muitas relações entre comprador e vendedor; hoje só existe uma – a comercial. A tendência do capitalismo tem sido a de se livrar dos diferentes modos, costumes, dos contrastes locais e nacionais, e de estabelecer no seu lugar o nivelamento morto da cidade cosmopolita. Resumindo, tem existido uma tendência em direção à uniformidade, e nisto o capitalismo e o liberalismo têm muito em comum. Ao liberalismo já concluímos ser um parente próximo do judaísmo, e portanto encontramo-nos com o trio aparentado do capitalismo, liberalismo e judaísmo.

Como é a semelhança interior entre o primeiro e o último melhor manifestada? Não é através da agência do dinheiro, pelo meio do qual o capitalismo prospera tão bem na política de levar a cabo uma uniformidade tediosa? O dinheiro é o denominador comum, em termos pelos quais todos os valores são expressos; ao mesmo tempo, é o todo abrangente objetivo da atividade económica no sistema capitalístico. Então uma das conspicuidades de tal sistema é o sucesso. É de outro modo com o judeu? Não faz este também do aumento do capital o seu objetivo principal? E não só porque a abstração do capital é congenial à alma do judeu, mas também porque a grande conta com que o dinheiro é levado em conta (no sistema capitalista) é uma nota simpatética para o caráter judaico – a sua teleologia. O ouro torna-se o grande expediente, e o seu valor surge do facto de que pode ser realizado para muitos fins. Necessita-se de pouco esforço para demonstrar que uma natureza focada em trabalhar com vista a uma objetivo deva-se sentir atraída para algo que tem valor apenas porque é um meio para um fim. Mais, a teleologia do judeu confirma que ele premeia o sucesso. (Outro ponto de similitude, portanto, com o capitalismo.) Porque ele premeia o sucesso de forma tão elevada, ele sacrifica o hoje pelo amanhã, e a sua mobilidade só o ajuda para o executar ainda melhor. Aqui de novo observamos uma semelhança com o capitalismo. O capitalismo encontra-se constantemente na busca de algo novo, por algum modo de o expandir, de obter hoje com o motivo do amanhã. Pense-se em todo o nosso sistema de crédito. Não se torna esta característica suficientemente clara? Agora lembre-se também que os judeus encontravam-se totalmente à vontade na organização de crédito – no qual valores ou serviços que poderão, ou podem, tornar-se efetivos em alguma altura no futuro, são postos à disposição hoje. O pensamento humano pode claramente imaginar experiências e necessidades futuras, e o crédito proporciona a oportunidade através de atividades económicas atuais de produzir valores futuros. Que o crédito é extensivamente encontrado na vida moderna é algo fútil de demonstrar. A razão é igualmente óbvia: oferece oportunidades de ouro. Verdade, temos de desistir das satisfações que nascem de “nos atirarmos de cabeça para o presente.” Mas o que importa isso? O caráter judeu e o capitalismo têm mais um ponto em comum – o racionalismo prático, pelo qual quero dizer o modelar de todas as atividades de acordo com a razão.

Para tornar todo o paralelismo ainda mais claro, deixe-se-me ilustrá-lo por exemplos concretos. O judeu encontra-se bem equipado para fazer o papel de empresário pela sua força de vontade e o seu hábito de se estabelecer num determinado objetivo. A sua mobilidade intelectual é responsável pela sua prontidão para descobrir novos métodos de produção e novas possibilidades de marketing. Ele é adepto de formar organizações novas, e nesta a sua peculiar capacidade para descobrir para o que um homem se encontra melhor capacitado só o beneficia. E desde que no mundo do capitalismo não existe nada de orgânico ou natural mas apenas o que é mecânico ou artificial, a falta de entendimento do judeu acerca do primeiro não é de consequência. É por tal razão que os judeus são tão bem-sucedidos como organizadores de enormes empreendimentos capitalistas. De novo, o judeu consegue facilmente compreender relações impessoais. Já notámos que ele só possui o sentimento de dependência pessoal em pequena escala. Portanto, ele não se preocupa com o vosso “patriarcalismo” grisalho e presta pouca atenção aos traços de sentimentalidade que são encontrados nos contratos de trabalho. Em todas as relações entre vendedores e compradores, e entre empregadores e empregados, ele tudo reduz a uma base legal e puramente comercial. Na lutar dos trabalhadores para obterem acordos coletivos entre eles e os patrões, que deverão regular as condições do seu trabalho, o judeu encontra-se invariavelmente do lado dos primeiros.

Mas se o judeu encontra-se bem equipado para ser um empresário, ainda mais o será para o papel de mercador. As suas qualidades a este respeito são praticamente inumeráveis.

O negociante habita em números, e em números o judeu sempre se encontrou no seu elemento. O seu amor pelo abstrato tornou os cálculos fáceis para ele; é o seu ponto forte. Agora, um talento calculador combinado com uma capacidade para sempre trabalhar com um fim à vista, já conquistou meia-batalha para o negociante. Ele encontra-se capacitado para sopesar as hipóteses, as possibilidades e as vantagens de qualquer situação dada, de eliminar tudo que é desnecessário, e para avaliar tudo em termos de números. Dê-se a este calculador sóbrio uma forte dose de imaginação e encontrar-se-á o perfeito especulador. Para fazer o inventário de qualquer estado de coisas a uma grande velocidade, para prever mil eventualidades, capturar a mais valiosa e agir de acordo com tal – isso, como já apontámos, é o objetivo do negociante. Para tudo isto o judeu possui as necessárias dádivas da mente. Gostaria de enfatizar expressamente o parentesco próximo entre as atividades do inteligente especulador e aquelas do médico inteligente que consegue com sucesso diagnosticar uma doença. O judeu, por causa destas qualidades, encontra-se eminentemente equipado para ambas.

Um bom negociante tem de ser um bom negociador. Que mais inteligentes negociadores existem para além dos judeus, cuja habilidade nesta área há muito foi reconhecida e utilizada? Para se adaptar às necessidades de um mercado, para cumprir qualquer específica forma de exigência, é o requisito primordial para o negociante. Que o judeu com a sua de adaptabilidade pode-o fazer melhor que ninguém é óbvio. A segunda é o poder de sugestão, e nisto o judeu encontra-se bem qualificado pela sua capacidade de colocar-se na situação do outro.

Para onde olharmos a conclusão que se força em nós é de que a combinação deste cardápio de qualidades não se encontram tão perfeitamente representadas como no judeu para a realização dos melhores resultados capitalistas. Não existe necessidade para mim de levar o paralelismo ainda mais longe; o leitor inteligente pode facilmente fazê-lo pelos seus meios. Apenas direcionaria a sua atenção para mais um ponto antes de deixar este assunto – o paralelismo entre a inquietação febril do negócio da bolsa de valores, sempre obcecado em perturbar a tendência em direção a um equilíbrio, e a agitada natureza do judeu.

Noutro lugar procurei caracterizar o empreendedor ideal em três palavras – ele deve ser desperto, inteligente e industrioso. Desperto: isto é dizer, rápido de entendimento, certeza no julgamento, deve pensar duas vezes antes de falar e ser capaz de atacar no momento correto. Inteligente: isto é dizer, ele tem de possuir um conhecimento do mundo, deve estar seguro de si no seu julgamento e no seu tratamento de homens, certo do seu julgamento numa dada conjetura; e, acima de tudo, familiar com as fraquezas e os erros daqueles à sua volta. Industrioso: isto é dizer, cheio de ideias. O empreendedor capitalista tem de possuir três qualidades adicionais: ele tem de ser ativo, sóbrio e minucioso. Por sóbrio, quero dizer livre de paixão, de sentimento, de idealismo impraticável. Por minucioso, quero dizer confiável, consciencioso, ordenado, arrumado e frugal.


Acredito que este esboço grosseiro irá, em traços largos, representar o empreendedor capitalista e, não menos, o judeu.

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